Título: A Petrobrás e a política energética
Autor: Fernando Henrique Cardoso
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/05/2006, Nacional, p. A2

Faz poucos dias, o governo Lula comemorou, com ares de monopolista de êxitos, a auto-suficiência na produção de petróleo. Tirando a arrogância dos personagens que lambuzaram as mãos, fez bem o governo em celebrar um êxito que é fruto de esforços de gerações e de diversos governos, como mostrou Jarbas Passarinho em artigo publicado na última terça-feira nesta mesma página. E não nos esqueçamos dos técnicos e trabalhadores da Petrobrás, que foram fundamentais para as vitórias alcançadas.

A História é caprichosa e chega a ser irônica. Dada a posição de minha família nas lutas pelo monopólio do petróleo (meu pai e um tio eram considerados "generais do petróleo"), não seria de estranhar que eu tenha sido tesoureiro do Centro de Estudos e Defesa do Petróleo de São Paulo, pivô local da campanha "o petróleo é nosso". Essa foi uma das "acusações" que me fizeram no inquérito a que respondi em 1964, que me custou ordem de prisão, anulada pelo Superior Tribunal Militar em 1967. É fácil entender, portanto, que eu sentisse, na época, horror ao Relatório Link. Pois bem, basta ler o artigo do geólogo José Coutinho Barbosa (*), ex-diretor da Petrobrás, para ver que o sr. Link escreveu coisas sensatas e não merecia tanta reprovação. Escreveu, por exemplo, que havia probabilidade de se encontrar óleo nas águas de Sergipe e que o Brasil, em terra, era pobre do precioso líquido. Mas, sobretudo, ele formou toda uma geração de geólogos brasileiros que asseguraram os êxitos futuros. Certa humildade e menor precipitação no julgamento dos outros são, portanto, aconselháveis.

José Coutinho chama a atenção para um segundo momento fundamental da história da Petrobrás, o do desenvolvimento dos campos de petróleo na Bacia de Campos e, logo depois, no governo Geisel, na de Santos, com contratos de risco que deram magros resultados em petróleo, mas ricas informações geológicas, entregues à Petrobrás. Para a condução dessa etapa a ação do geólogo Carlos Walter Marinho Campos foi decisiva.

A terceira etapa para transformar a Petrobrás em grande empresa internacional, diz Coutinho, foi conduzida por Henri Philippe Reichstul. Nesta administração, no dizer do comentarista, "produziu-se um novo e revolucionário Planejamento Estratégico (...) os novos planos provocaram uma profunda reestruturação nos sistemas de governança corporativa e gestão empresarial", alinhando as diversas áreas de negócios, introduzindo modernos sistemas de avaliação, valorizando a transparência no relacionamento com seus públicos de interesse e, acrescento eu, permitindo a recuperação de uma política ecológica responsável. "Um legado extraordinário que irá marcar a companhia por muitos anos", escreveu Coutinho. É de destacar que o Conselho de Administração da Petrobrás, até então, se compunha pelos próprios diretores-executivos da empresa! Que confiança teria o acionista, inclusive o governo, nesse tipo de controle? Não é de estranhar que, depois das modificações introduzidas por Reichstul, o valor de mercado da empresa tivesse saltado dos US$ 9 bilhões para quase US$ 30 bilhões, isso em época de petróleo a preços baixos.

A auto-suficiência do petróleo foi sendo construída, adaptando-se as políticas de governo e da empresa às condições do tempo. A flexibilização do monopólio, sua reafirmação nas mãos do Estado, e não da Petrobrás, o incentivo à competição, a definição de regras de transparência na gestão, a definição de uma estratégia diversificada e harmoniosa dos negócios, em vez da opacidade, da contínua interferência político-partidária, nada têm que ver com a privatização da companhia (mesmo porque sempre fui contra essa alternativa, como afirmei em carta enviada ao Senado em 1997). O atual presidente da empresa, quando insinuou que na modernização implementada havia tal propósito, pecou por desconhecimento, na hipótese benigna e não menos preocupante, ou por distorção dos fatos com mera intenção eleitoreira. Eu, quando detestei o Relatório Link, asseguro, pequei por ignorância e por paixão política.

A verdade é que a aspiração à auto-suficiência é antiga, foi-se tornando possível com as descobertas das reservas gigantes de Marlim e de Albacora, às quais se sucederam as de Roncador, Marlim Sul e tantas outras mais, em tal velocidade que, hoje, a Petrobrás é uma das poucas companhias que aumentam mais depressa suas reservas do que a produção. Mas a auto-suficiência não teria sido possível se os engenheiros não tivessem sido capazes de desenvolver tecnologias para trabalhar em águas profundas e se não tivéssemos rompido a estagnação relativa de extração de óleo entre 1985 e 1994. Enquanto naqueles dez anos a produção passou de 564 mil barris por dia para apenas 693 mil, ela quase triplicou entre 1994 e 2002, atingindo 1,5 milhão de barris, para um consumo de pouco mais de 1,7 milhão de barris. Não nos esqueçamos de que as plataformas gigantes em operação no mar, inclusive a última instalada agora com rojões, a P-50, foram contratadas em governos anteriores. O atual perdeu tempo querendo construir grandes plataformas nos estaleiros locais, que ainda não têm capacidade para tanto, e finalmente também as contratou no exterior.

Ao invés de dormir sobre os louros alcançados, o que se requer agora é uma nova política energética. Uma política que poupe as reservas de petróleo (pois em futuro não remoto ele escasseará no mundo), que decida o que fazer com o gás e defina o papel da hidreletricidade e da biomassa em nossa matriz energética. Depois do surto expropriador boliviano, intensificaremos a exploração do gás da Bacia de Santos, ou nos arriscaremos a fazer o supergasoduto venezuelano? Defenderemos nossos interesses com mais firmeza ou continuaremos a dar justificativas - óbvias - para desculpar a ação expropriadora do governo boliviano? E, sobretudo, seremos capazes de construir uma matriz energética que, complementarmente à hidreletricidade, dê preeminência à energia derivada da cana-de-açúcar e das oleaginosas?

São essas as questões que importam, e não a competição infantil entre quem fez mais ou menos na exploração do petróleo. Mesmo porque, depois que se descobre que é possível fazer voar o mais pesado do que o ar (e essa é a diferença que conta), aumentar a velocidade do vôo é importante, mas é mais fácil. É quase uma obrigação. O desafio agora não é o de fazer mais do mesmo, mas inovar em matéria de energia.

(*) José Coutinho Barbosa, A história do Petróleo no Brasil, in José Luiz Alqueres, ed., Infra-estrutura de Energia e Transporte, Alston, São Paulo, 2005, p. 87-91.