Título: Tratado de Comércio dos Povos
Autor: Rubens Barbosa
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/05/2006, Espaço Aberto, p. A2

Em 29 de abril, os presidentes da Venezuela, Hugo Chávez, e da Bolívia, Evo Morales, e o primeiro-ministro de Cuba, Fidel Castro, reuniram-se em Havana para celebrar o primeiro aniversário dos Acordos de Implementação da Alternativa Bolivariana para os Povos da Nossa América (Alba). Por ocasião desse encontro foi assinado o Tratado de Comércio dos Povos, "instrumento de intercâmbio solidário e complementar em contraposição aos tratados de livre comércio (Alca) que visam a aumentar o poder e o domínio das multinacionais".

Vistos do prisma do Brasil, esses documentos são de particular relevância por referências diretas à questão do gás da Bolívia e pelo fato de que, dois dias depois de sua assinatura em Havana, o presidente Evo Morales anunciou, com estridência e com desnecessária manifestação de força militar, a nacionalização dos recursos petrolíferos da Bolívia.

Pouco foi noticiado sobre esse acordo. Em vez de fazer uma análise interpretativa, para compreender o alcance do que Chávez apresenta como alternativa para os países latino-americanos se livrarem da dependência dos EUA, pareceu-me conveniente transcrever literalmente alguns trechos do comunicado conjunto e de partes do tratado firmados pelos três mandatários.

O comunicado conjunto trata da situação da Bolívia, dos desafios enfrentados por Evo Morales e da integração regional, "concebida como um tipo de relações políticas e econômicas muito diversas daquelas estabelecidas pela Alca e pelos acordos de livre comércio".

Os três mandatários partilham a convicção de uma decidida solidariedade, ajuda mútua e cooperação entre seus povos não guiadas por interesses de lucro mercantil ou empresarial. Em especial, no caso particular da Bolívia, a fim de avançar na tarefa de transformar a presente realidade de profundas carências em serviços sociais básicos, como educação e saúde, no aproveitamento dos recursos naturais do subsolo, como o gás, o petróleo e outros, no desenvolvimento do potencial agrícola e na formação de recursos humanos qualificados, em benefício dos pobres, dos explorados e dos discriminados.

O Tratado de Comércio dos Povos estabelece políticas de educação, de saúde, de investimento e de tecnologia entre os três países e define medidas e ações concretas a serem desenvolvidas individualmente por Cuba e Venezuela, as ações conjuntas dos dois países em relação à Bolívia, além de outras a serem desenvolvidas por este país em suas relações com os dois outros. Juntos, os três países:

Elaborarão um plano estratégico para garantir a mais benéfica complementação produtiva baseada na racionalidade, no aproveitamento de vantagens existentes nesses países, na poupança de recursos, na ampliação do emprego, no acesso a mercado ou outras considerações, apoiado numa verdadeira solidariedade que desenvolva os respectivos povos;

trabalharão em conjunto, em coordenação com outros países latino-americanos, para eliminar o analfabetismo, empregando métodos de aplicação em massa, de comprovada e rápida eficácia, levados à pratica com grande sucesso na Venezuela;

envidarão esforços para que o país sede possua, pelo menos, 51% das ações, nos casos de empresas binacionais ou trinacionais de importância estratégica, desde que a natureza e o custo do investimento o permitam;

as exportações de bens e serviços provenientes de Cuba serão pagas com produtos bolivianos, na moeda nacional da Bolívia ou em outras moedas mutuamente acordadas.

A Bolívia compromete-se a exportar minérios, produtos agrícolas, agroindustriais, pecuários e industriais, a contribuir para a segurança energética da Venezuela e de Cuba com sua produção disponível e excedente de hidrocarbonetos e a isentar de impostos qualquer investimento estatal e de empresas mistas que se formarem com os dois países.

Os governos da Venezuela e de Cuba:

Reconhecem as especiais necessidades da Bolívia como resultado da exploração e o saqueio de seus recursos durante séculos de dominação colonial e neocolonial;

promoverão, em coordenação com a Bolívia, as ações necessárias para apoiar a justa demanda boliviana do cancelamento, sem condicionamento algum, de sua dívida externa, que constitui um sério obstáculo à luta da Bolívia contra a pobreza e a desigualdade.

eliminam imediatamente taxas alfandegárias ou qualquer tipo de barreira não-tarifária aplicáveis a todas as importações do universo tarifário da Bolívia;

garantem a compra das quantidades de produtos da cadeia oleaginosa e outros produtos agrícolas e industriais exportados pela Bolívia que possam ficar sem mercado em conseqüência da aplicação de acordos de livre comércio assinados com os EUA ou com a União Européia.

A Venezuela:

estimulará uma ampla cooperação no domínio energético e de minérios que incluirá o fortalecimento institucional, através da assistência técnica-jurídica, do Ministério de Hidrocarbonetos e Energia e do Ministério de Minas e Metalurgia da Bolívia; a ampliação do fornecimento de óleo cru, produtos refinados, GLP e asfalto, até os volumes requeridos para satisfazer a demanda interna da Bolívia, estabelecendo mecanismos de compensação com produtos bolivianos; assistência técnica às empresas YPFB e Comibol; desenvolvimento de projetos de adequação e ampliação de infra-estrutura e petroquímica, siderúrgicos, químico-industriais, bem como outras formas de cooperação que as partes acordarem;

criará um fundo especial, de até US$ 100 milhões, para o financiamento de projetos produtivos e de infra-estrutura a eles vinculados em favor da Bolívia;

doará US$ 30 milhões para atender às necessidades de caráter social e produtivo do povo boliviano, de conformidade com determinação do governo da Bolívia.

São a liderança e a força do petróleo de Chávez postas à prova. Aguardemos os resultados.