Título: A face oculta de Chávez
Autor: Antonio Gonçalves Filho
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/05/2006, Caderno 2, p. D1,9

Casal de biógrafos pesquisa a história do presidente venezuelano e conclui que o militar só pensa numa coisa: mais poder

Demonizado pelos EUA como um novo Hitler, endeusado pelos descamisados venezuelanos como a reencarnação de Bolívar, o polêmico presidente da Venezuela Hugo Chávez ganha, enfim, uma biografia equilibrada escrita por um casal de jornalistas de Caracas, Cristina Marcano e Alberto Barrera Tyszka. Hugo Chávez sem Uniforme: Uma História Pessoal (Gryphus, 397 págs., R$ 49) será lançada na terça com a presença dos autores, no Rio. De Caracas, o casal concedeu uma entrevista ao Estado sobre a biografia, que tenta entender o fenômeno da ascensão do líder e sua retórica militarista, que está contaminando tanto o discurso popular como intelectual na Venezuela.

Entre a imagem do presidente eleito pelo voto democrático e a do caudilho autoritário que pisa sobre as instituições, perseguindo seus opositores políticos, o enigma Chávez é decifrado por meio de surpreendentes depoimentos - inclusive de seu psicanalista . Verborrágico, voluntarioso, Chávez construiu alianças polêmicas (Fidel Castro, o presidente iraniano Ahmadinejad) e muda de personalidade como quem troca de roupa, a ponto de ser chamado pelo analista político Teodoro Petkoff de "Zelig tropical", numa referência ao personagem de Woody Allen que está sempre mudando e se interpondo em cada cena da história.

A biografia de Hugo Chávez define o presidente como um homem contraditório. Ele é um esquizofrênico, um revolucionário ou um farsante?

O presidente venezuelano é um homem muito complexo. Durante a pesquisa para escrever a sua biografia, encontramos um homem coerente com suas ambições. Ainda que, no começo, tenha sido subestimado por seus adversários políticos, trata-se de um homem perseverante, conseqüente com suas metas e incansável. Não nos atreveríamos a fazer um diagnóstico psiquiátrico, mas entre seus conhecidos está um fiel ex-psiquiatra que assegura ser Chávez uma personalidade narcisista clássica. Acredita ser um revolucionário e seus seguidores assim o vêem, mas o que parece ter havido na Venezuela não foi uma revolução, e sim a substituição da classe política dominante por outra.

Vocês acham que Chávez é responsável pelo nascimento de outros líderes na América Latina, como o presidente boliviano Evo Morales ?

Sem dúvida, ele respalda Evo Morales desde sua aparição no cenário político e pode ter assessorado o presidente boliviano, embora Morales não seja um pára-quedista no mundo das lutas políticas nem pareça uma invenção de ninguém. É provável que chegasse à Presidência mesmo sem o apoio de Chávez. Acredito que Chávez tenha simplesmente marcado o início de uma tendência esquerdista na região, explicável pelo fracasso das receitas neoliberais e dos governos anteriores.

Os Estados Unidos vão proibir a exportação de armas para a Venezuela. Chávez é um fator de desestabilização na América Latina?

Para os EUA, Chávez é uma voz perturbadora, que se opõe frontalmente a eles - ao menos no terreno do discurso. No entanto, para outros países do continente, Chávez não parece representar esse fator desestabilizador. É certo que opina facilmente sobre todos os assuntos, de uma saída boliviana para o mar às eleições do Peru e do México, mas, até a recente nacionalização do petróleo decretada por Morales, Chávez não parecia ser visto com um peso tão determinante na política da região .

Chávez costuma agitar um crucifixo enquanto cita Che Guevara. Quem é o autêntico Chávez? Um esquerdista ou um neopopulista?

Na pesquisa que fizemos para o livro, começamos a descobrir que, ao menos em termos de definições, Hugo Chávez pode ser muitas pessoas ao mesmo tempo. Ele mudou. No começo, dizia não ser nem de direita nem de esquerda, mas bolivariano. Também se declarou partidário da terceira via. Depois de um ano, disse que era de esquerda e que haveria de inventar o socialismo do século 21. Ele, sem dúvida, jamais se reconhecerá como populista ou neopopulista. Defende-se desses ataques falando de solidariedade.

A biografia está dividida em duas partes: a primeira vai de seu nascimento a 1998, quando alcança o poder e se transforma. Como vocês definiriam o segundo Chávez: um líder messiânico ou um herói com imaginário social bolivariano?

Nossa intenção, ao dividir o livro em duas etapas, tinha muito mais a ver com o fato de sua chegada ao poder. Existe um Chávez desconhecido que, desde muito jovem, almeja o poder e o buscou, inclusive pelas armas. Existe também outro Chávez que alcança seu objetivo nas eleições de 1998 e toma outro rumo. Para muitos dos entrevistados no livro, Hugo Chávez começou um processo de transformação a partir de sua chegada à Presidência. Em ambos, contudo, está presente o elemento militar. Ele era e continua sendo um soldado. A condição militar deixa-o orgulhoso.

O projeto político de Chávez como presidente já foi classificado de autoritário e totalitário. É certo que Chávez articula um confronto entre Brasil e Bolívia para ganhar poder?

No plano interno, Chávez estimula o confronto e fareja inimigos em todo lado. Há quem diga que é uma técnica guerrilheira própria de um homem formado nas fileiras militares e que menospreza estratégias mais civis e menos polarizantes de fazer política. No plano externo, levou essa pulsão ao máximo com os EUA, mas não acredito que venha a irritar um aliado importante para ele como o Brasil. Num possível conflito entre Brasil e Bolívia, Chávez ficaria numa posição algo incômoda, já que publicamente desfruta o jogo de mediador.

É verdade que muitos venezuelanos veneram Chávez como uma figura religiosa, a ponto de acender velas e rezar diante de sua imagem?

Há bustos e estatuetas de Chávez em alguns altares populares, onde também é possível encontrar imagens de Simón Bolívar e Negro Primero, outro herói da guerra da independência. À parte Chávez provocar grande emoção, ele desperta fidelidade afetiva entre seus seguidores. Talvez até encarne um vínculo entre a milionária renda oriunda do petróleo e a enorme pobreza dos venezuelanos. Isso faz parte da relação mágica que nós, venezuelanos, temos com a riqueza, que é nossa, mas que não nos pertence; uma riqueza que surge do solo, que não semeamos nem produzimos, mas que tampouco vemos concretamente em nossa vida diária. Chávez representa de novo essa esperança, esse sonho de que o milagre seja real.

O analista político Teodoro Petkoff descreve Chávez como um Zelig da América Latina. Para vocês, Chávez é um mutante como Zelig, adaptável a qualquer situação, ou um caudilho como Perón?

Quando compara Chávez com Zelig, Petkoff se refere a uma idéia com a qual lidamos na biografia: a de que o líder venezuelano tem habilidades camaleônicas. Ele sabe adaptar-se bem a seu público e chega a estabelecer um vínculo mimético com ele, residindo aí parte de seu carisma. Mas, a exemplo de Perón, é um militar que governa de maneira populista e personalista. Mantida a distância que os separa, a figura do líder argentino é o referente mais próximo do fenômeno Chávez na América Latina.

A retórica de Chávez é bélica. Seu modelo inspiraria outros golpistas antichavistas a uma ação militar com o apoio dos EUA? É possível um outro golpe no quadro atual?

É muito difícil fazer previsões desse tipo. Em princípio, depois do golpe de 2002, a Força Armada Nacional foi depurada, ficando sob aparente controle do governo. Mas claro que sempre pode existir alguém pensando em aventuras golpistas. Um golpe de Estado é, sim, factível, mas, provavelmente, não teria legitimidade nem interna nem externa. Por outro lado, não se pode afirmar com segurança que a retórica belicosa de Chávez inspire outros golpistas. Sua retórica afeta, sim, o país. Cria, de alguma maneira, um clima de guerra, militariza até a linguagem, propõe um ambiente mais de quartel que de experiência civil, mas não acreditamos que isso motive alguém a pensar numa intentona.

Os franceses dizem que Chávez só ocupa a cena política da Venezuela em razão do vazio sideral deixado pela oposição. Como vocês analisam essa teoria?

A oposição política cometeu grandes erros políticos e tinha poucos planos a oferecer ao país, mas Chávez e seu governo se comportam de maneira truculenta contra qualquer dissidência. Por isso Chávez diz que fica no poder até 2030. Não há lógica de alternância, de negociação, do jogo político entre oposição e governo.