Título: Um país à espera do fim do ciclo do atraso
Autor: Paulo Moreira Leite
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/05/2006, Economia & Negócios, p. B12,13

'Este é o país dos carros velhos e dos muito velhos', diz um negociante

Há um grão de poesia no esforço e na miséria dos 15 mil homens e mulheres que trabalham na Feira 16 de Julho, um aglomerado disforme de barracas e lonas estendidas no chão em El Alto, cidade nas vizinhanças de La Paz. A feira ocupa uma área de cinco quarteirões, invade ruas de terra e terrenos baldios.

Ali é possível comprar roupas usadas e peixe fresco, material de construção e biscoitos, objetos domésticos, frutas, televisores e telefones celular, carros seminovos e peças de reposição. É um retrato vivo das durezas do país e do esforço do povo mais humilde para vencê-las.

Mãe de quatro filhos, roupas coloridas de camponesa, dentes cobertos de ouro, um rosto quase infantil por baixo da poeira que cobre a pele bronzeada de indígena, Angélica Nina é uma aimará (etnia) que vende leite de jumenta na feira. Todas as manhãs ela deixa a casa, num povoado próximo, passa no curral, onde dormem seus animais - seis fêmeas adultas, três crias - e caminha até uma pequena barraca coberta de plástico. "O leite de jumenta é muito bom para os pulmões", garante um dos fregueses, virando um copinho cheio, semelhante aos de vodca.

O movimento em torno da barraca confirma o prestígio das jumentas de Angélica. Não pára de chegar fregueses. Um deles não pode vir, mas mandou um saco plástico, onde cabem cinco copinhos. Um grupinho se reúne para falar dos assuntos do dia, no idioma de quem é natural do lugar - o aimará. Angélica Nina fala espanhol quando necessário. Mas é um som travado e estranho, com palavras pronunciadas com dificuldade, vocabulário pequeno. Conta que a maior preocupação envolve os filhos. "A vida está difícil. Eu gostaria que tivessem um padrinho para ajudá-los."

A menos de um metros dali, um vendedor de peças de automóveis nem interrompe a garfada no arroz com pedaços de carne para informar o preço de um motor Chevrolet 1980. "US$ 140", diz, referindo-se a uma quantia que equivale a mais de dois salários mínimos bolivianos.

Quem poderia se interessar pelo motor de um automóvel fabricado há 26 anos, que dificilmente deve ter boa saúde num país montanhoso, de estradas ruins? "Esse motor vai ser vendido em uma semana, no máximo", diz ele, como se já enxergasse o rosto do futuro cliente. "Este é o país dos carros velhos e dos muito velhos."

CARROS ROUBADOS

A feira é a maior da Bolívia e é procurada por oferecer mercadorias a preços que ninguém consegue enfrentar. Ali se vê um par de meias novas por 50 centavos de real e é possível comprar duas latas de atum por 10 centavos de real. Há automóveis de todas as categorias - inclusive aquele que não tem documentos em ordem porque foram roubados, embora ninguém diga isso com clareza.

O vendedor apenas explica que o automóvel não tem papéis, como se fosse um problema menor, uma lanterna traseira quebrada. Se o cliente quiser levar, o problema é dele. (os clientes levam porque o desconto é sempre grande).

A feira funciona às quintas-feiras e aos domingos - e é uma bagunça só na aparência. Ninguém pode vender um alfinete se não for filiado a uma das 128 associações que controlam uma área estimada em 50 mil m2. Essas associações tem dirigentes eleitos, que discutem com autoridades, levam reivindicações e recebem pedidos. Na semana passada, o principal pleito era conseguir asfaltar algumas ruas.

"A poeira suja nossas peças", afirma Justo Gutierrez, um dos dirigentes da União Pacajes, com 120 associados, espalhados por meio quarteirão. O forte da banca de Gutierrez - uma das maiores do lugar - são peças domésticas de plástico, como baldes e vasilhas, mas ele também mantém uma pequena seção de roupas.

Embora dedicadas ao comércio, as associações de El Alto são famosas na Bolívia por sua capacidade de ação política. Foi ali que teve início o movimento que derrubou o presidente Sanchez de Losada e onde a votação de Evo Morales explodiu no ano passado. Cercada de barracos da feira por todos os lados, surge a torre de uma igreja. No altar, ao lado de imagens sagradas, há uma bandeira da Bolívia - e também uma Wiphala, a bandeira quadrada dos aimarás, que o MAS, partido de Evo, adotou como sua.

Entre tantas quinquilharias, vez por outra aparece uma barraca que vende livros velhos. Livreiro nos dias de feira, eletricista que presta serviços domésticos nos outros dias da semana, há dez anos Adrian Quispe montou seu negócio, que toca junto com uma das três filhas. O gosto do público é menos surpreendente do que se imagina. O autor mais vendido é um escritor boliviano de auto-ajuda, que ensina receitas variadas - inclusive como os noivos devem encarar o sexo antes do casamento.

Outro muito procurado é Paulo Coelho. Mas Adrian tem uma boa coleção de autores de esquerda. Oferece uma edição resumida de O Capital, de Karl Marx, e o texto integral de A Origem da Família, do Estado e da Propriedade Privada, de Friederich Engels. "As pessoas pedem muito livros sobre Fidel Castro e Che Guevara, mas eu tenho pouca coisa", diz Adrian.

Militante de primeira da campanha presidencial de Evo, Adrian é dessas pessoas capazes de construir argumentos próprios para falar bem do presidente. "Ainda é cedo para esperar qualquer coisa, mas ele já começou a fazer um bem para o país" afirma. Como? "Ele começa a trabalhar às cinco da manhã e isso está fazendo os bons bolivianos saírem da cama a essa hora" conta. "Eu mesmo passei a trabalhar mais cedo." A filha ouve a conversa do pai, um tipo magrinho e bem-humorado, e sorri.