Título: Sonho de boliviano é fazer as malas e ir embora
Autor: Paulo Moreira Leite
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/05/2006, Economia & Negócios, p. B12,13

Remessa de dinheiro dos que imigraram para cidades vizinhas é estimada em US$ 500 milhões

Estrangeiros que residem há tempos em La Paz garantem que o sonho de todo boliviano que quer melhorar de vida é fazer as malas e deixar o país. A diáspora boliviana envolve uma massa de 1,5 milhão de pessoas - perto de 15% da população total do país -, a maior parte morando em Buenos Aires e cidades vizinhas. A remessa do dinheiro dos imigrantes envolve uma bolada estimada, por baixo, em U$ 500 milhões, quase a mesma soma que o governo Evo Morales pretende arrecadar elevando o preço do gás.

Quem fica no país procura brechas para melhorar de vida - e, de vez em quando, consegue encontrá-las. Filhos de um mineiro que conseguiu estudar para cumprir a vocação de professor, os irmãos Jaime e Raul Cusi seguiram carreira como pequenos empresários. Mais velho, Jaime importa da China geladeiras, televisores e computadores, que entrega no varejo de La Paz. Após 25 anos de trabalho, é um homem bem-sucedido. Em alguns meses tem um giro equivalente a US$ 300 mil, soma respeitável para quem trabalha sozinho. "Este é um país que não dá nada para você", afirma. Não há empregos no governo e a iniciativa privada não tem força. Você tem de criar seu próprio trabalho e ir em frente."

O irmão Raul Cusi tem um restaurante em Copacabana, cidade turística a poucas horas de La Paz. Também possui um restaurante e um pequeno hotel na capital da Bolívia. Raul dá emprego para 16 funcionários, muitos temporários. Reclama muito do governo - de qualquer governo - mas admite que alguma coisa melhorou no país. "As mulheres passaram a estudar".

Também em Copacabana, Rosário Suxo Suxo cria cinco filhos com os recursos de uma pequena fábrica de artesanatos em prata que herdou dos pais. Rosário era professora, mas mudou de ocupação por causa do salário baixo, equivalente a R$ 130. Quando visita a cidade peruana de Yunguyo, que faz divisa com Copacabana, fica inconformada. "Os peruanos tiveram um presidente, o Alberto Fujimori, que resolveu vários problemas do país. Acabou com o terrorismo, construiu escolas. Em Yunguyo eles têm até faculdade. Ñós não temos nada disso".

Os três empresários têm origem aimará, a mesma que o presidente Evo Morales, mas a identidade cultural pesa menos do que seus interesses concretos. "Os empresários precisam de crédito e fomento para criar empregos, mas até agora não se fez nada isso", diz Raul Cusi. Essas diferenças são antigas. No início da década, um grupo guerrilheiro liderado por um aliado de Evo bloqueou entradas e saídas de Copacabana por três meses, sem ser importunado pelo governo federal. Quando descobriu que a população estava usando a fronteira com o Peru para entrar e sair, os guerrilheiros ergueram uma muralha de pedras, paus e barro e avisaram que quem insistisse em sair do país seria preso e obrigado a pagar uma multa.

"Começou a faltar tudo, até comida", conta Rosário, que alega ter perdido um contrato de exportação para a Espanha porque não foi capaz de atender encomendas no prazo. "Como eu poderia entregar moedas e medalhas de prata na Europa com todas as saídas fechadas?" reclama. Raul Cusi conta que os guerrilheiros entravam na cidade e queriam comida e hospedagem grátis. "Ficaram vários dias no hotel de um vizinho meu", conta. "Quando ameaçaram invadir meu hotel, mandei avisar que iria recebê-los à bala. Eles não vieram".