Título: Pobreza e sonegação explicam fraqueza do Estado boliviano
Autor: Paulo Moreira Leite
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/05/2006, Economia & Negócios, p. B12,13

Trabalho informal alimenta a maior parte das famílias, que de tão pobres não têm dinheiro para pagar impostos

Na sexta-feira, o Estado assistiu numa praça da zona sul de La Paz a uma cena que demonstra o convívio entre culturas que marca a vida social da Bolívia. Cumprindo um ritual indígena que prevê castigos físicos em caso de falta grave, um grupo de motoristas decidiu punir um colega que, nas palavras de uma testemunha, chegara embriagado ao trabalho. Ele foi apanhado pelas pernas e pelos braços por quatro colegas, todos uniformizados com calça azul marinho e camisa branca, enquanto um quinto passou a chicoteá-lo nas costas com um cinto dobrado, sob o olhar indiferente de quem passava pela rua. "Não há motivo para se espantar: ele só está recebendo uma lição dos colegas", disse um taxista que via a cena.

Há muitas surpresas na paisagem social boliviana - e não só a sobrevivência no local de trabalho de práticas pré-coloniais indígenas que prevêem castigos físicos. No país mais pobre da América do Sul, que acumulou uma taxa de crescimento negativo de 1% nos últimos 50 anos, não se vê crianças pedindo esmola nas ruas, os índices de criminalidade são crescentes mas baixos, a violência está mais presente nos seriados americanos da TV do que na vida cotidiana. Nas ruas de La Paz e Santa Cruz, as maiores cidades do país, ninguém dorme na calçada.

Embora 60% da população sobreviva abaixo da linha da pobreza, padrão duas vezes superior ao brasileiro, a Bolívia foi capaz de resolver um problema básico, de dar teto e comida para todos. No restaurante La Finca, no centro de La Paz, é possível gastar R$ 2,50 num almoço que oferece salada, sopa à vontade, bife a cavalo com arroz, refresco de fruta e gelatina na sobremesa. O estabelecimento tem garçom de gravata para atender à clientela e toca Ray Coniff como música ambiente.

Em bairros afastados da cidade, é possível degustar uma iguaria indígena à base de queijo - 40 centavos de real. Ou tomar uma sopa de peixe do Lago Titicaca, enfeitada por um belo marisco na casca, por 30 centavos de real.

Incapaz de enfrentar preços tão baixos, a rede McDonald's baixou a guarda e desistiu de investir no país, gesto simbólico para um dos ícones da globalização. "A Bolívia experimentou a política econômica que dá valor à presença do Estado e também vivemos a experiência de governos privatizantes, mas nada deu certo", diz o economista Gonzalo Chávez, diretor de um curso de Desenvolvimento da Univesidade Católica de La Paz. "Não se conseguiu criar um padrão de desenvolvimento sustentável, capaz de incluir a maioria da população. Sempre dependemos de recursos naturais de exportação. Nos anos 50 foi o estanho. Agora é o gás."

ESCAMBO

Neste país de pouco Estado, onde os empresários são poucos e frágeis, sem capacidade para alavancar o crescimento - seu líder nacional é um exportador de couro que fatura U$ 12 milhões por ano -, o atraso econômico está no centro da vida de cada dia.

A comida é barata porque, sem maior controle de qualidade e sem boas estradas, a Bolívia exporta pouco. Sem intermediários, os próprios agricultores costumam entregar seus produtos nos mercados da cidade. Mesmo os supermercados são raridade. Em determinados povoados, à beira do Lago Titicaca, vigora a economia de troca, pela qual uma comunidade de pescadores troca peixe por carne e legumes.

A fraqueza do Estado se explica pela pobreza e pela sonegação. O trabalho informal alimenta a maior parte das famílias e os economistas concordam que a população é tão pobre que pouca gente teria mesmo dinheiro para pagar imposto. Muitos assalariados que são descontados na fonte conseguem restituição integral graças a um enorme comércio de notas frias.

A ausência de uma indústria forte alimenta o contrabando, pois o país sequer tem tecnologia para produzir imitações locais. "Aqui você encontra tudo, das melhores marcas e os preços melhores do que num free shop", afirma um diplomata.

Outro dia, empresários de transporte fizeram greve simplesmente porque não querem pagar imposto de renda. Os taxistas recusam recibos para os passageiros com o argumento de que são taxistas.

Na semana passada, uma estrada foi bloqueada por uma caravana de caminhões que protestava em nome dos contrabandistas de roupa usada. Eles agem assim: em portos chilenos, compram centenas de fardos de 25 quilos de roupas trazidas dos Estados Unidos, entram na Bolívia sem transtornos, desembrulham seus pacotes em barracas pela calçada das grandes cidades e começam a vender aos interessados - isto é, quase todo mundo que está passando. Nesse mercado, um cliente de sorte consegue comprar sapato Timberland bem conservado por R$ 5, pagará 25 centavos de real por uma gravata de seda e levará uma camisa por R$ 1. Convencido de que o contrabando de roupas usadas canibaliza a indústria de confecções, uma tradição do país, o governo tenta proibi-lo - mas os protestos mostram que há um longo percurso.

Nivelados por baixo na renda per capita anual de US$ 800, os bolivianos têm índices de igualdade social melhores que os brasileiros e argentinos. Seu padrão de escolaridade, 6 anos, é superior à média dos países sul-americanos. A urbanização da Bolívia foi lenta, até porque as cidades nunca ofereceram tantas promessas de progresso social como em outros países. Isso permitiu que os valores do mundo pré-colonial, das culturas quéchuas, aimarás e guaranis, chegassem ao século 21, na zona rural e também nas cidades.

CÓDIGO DE CONDUTA

Esse arsenal de valores inclui cuidar de crianças que se tornam órfãs e abrigar idosos que batem à porta de uma casa para almoçar. São alguns milhões de pessoas - nas camadas mais pobres - que se organizam com espírito comunitário e obedecem noções moralizantes e rigorosas de conduta, que incluem castigos físicos com chicotadas.

Chamado de "amasua", o código de conduta aimará, o mais conhecido, é formado por três princípios, que pais transmitem para filhos: "Não roubar; não ser preguiçoso; não mentir". O espírito de comunidade também cria laços úteis nos negócios e protege práticas subterrâneas. "Para muitos indígenas, o contrabando não é um problema deles, mas do governo de um Estado colonial que até agora pouco fez para conquistar sua lealdade", reconhece um líder aimará.

Uma casta aimará conhecida como Los Vacuños controla o comércio e distribuição de carne bovina em várias regiões do país, inclusive La Paz. Eles formam um grupo de famílias que se casa entre si e até hoje os pais escolhem os cônjuges para os filhos - que celebram o matrimônio em plena castidade, inclusive o noivo. A casta de quem distribui ovelhas é chamada de Los Ovinos e segue o mesmo regime. Esse espírito de organização vai além do mundo pré-colonial, porém.

Pressionados pela vida difícil, os bolivianos constituem uma das sociedades civis mais organizadas do planeta. São muito politizados, como demonstram as bancas de jornal de La Paz, que vendem jornais e revistas de assuntos políticos onde, em outros países, se oferece mulher pelada e vídeo pornográfico.

Embora não sejam exatamente trabalhadores, diversas associações de pequenos comerciantes estão filiadas à Central Obrera da Bolívia, entidade sindical criada por mineiros de estanho, categoria em extinção. Organizados em quarteirões, bairros e cidades, eles fazem o país viver num estado político de insurreição permanente desde que derrubaram o presidente Sanchez de Losada, que teve a infeliz idéia de planejar um aumento da exportação de gás quando a mercadoria estava em falta nas regiões mais pobres. Houve violência, onde era comum saquear lojas e explodir bombas de dinamite em casas de políticos conservadores.

O economista Gonzalo Chávez acha que o país estaria melhor se os bolivianos usassem suas organizações "com vontade empreendedora e espírito produtivo. Mas reivindicam e, muitas vezes, pedem aquilo que não podem conseguir porque não existe". O professor Fernando Untoja acha que essas organizações "impedem o país de explodir no caos".