Título: Falta fazer um ajuste fiscal. Com qualidade
Autor: Fernando Dantas
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/05/2006, Economia & Negócios, p. B3

Para Raul Velloso, a política fiscal pós-99 foi um 'desajuste fiscal'

O Brasil não cresce porque falta fazer um ajuste fiscal. A frase, à primeira vista, parece chocar-se com uma das poucas unanimidades entre especialistas das mais diversas colorações ideológicas - a de que, a partir de 1999, o País resolveu um dos seus mais sérios problemas macroeconômicos ao introduzir a política de grandes superávits fiscais primários, entrando em nova etapa histórica de responsabilidade fiscal e racionalidade nas contas públicas. Mesmo economistas de esquerda, que consideram exagero superávits primários como o de 2005, de 4,8% do PIB, admitem que aquela política foi fundamental para evitar um calote da dívida pública.

Agora, porém, o economista Raul Velloso, um dos maiores especialistas em contas públicas do Brasil, declara-se arrependido de ter chamado por tanto tempo a política fiscal pós-1999 de "ajuste". Para ele, "desajuste seria a expressão mais correta". O economista explica que um equilíbrio instável baseado na expansão contínua dos gastos e da arrecadação é insustentável porque há um limite de tolerância da sociedade - que já foi atingido - quanto ao volume de impostos que paga a um Estado que não dá em troca serviços públicos de qualidade.

A mudança no discurso de Velloso reflete a crescente insatisfação com os rumos da política fiscal por parte de especialistas que a apoiaram firmemente nos últimos anos - o mais curioso, porém, é que não houve nenhuma alteração substancial que justificasse aquela mudança de opinião. Na verdade, o Brasil parece estar despertando para o fato de que equilibrar receitas e despesas e evitar um calote da dívida pública são precondições importantes, mas nem de longe suficientes, para que o País volte a crescer de forma sustentável.

Em dez anos, de 1995 a 2005, os gastos da União cresceram 72,1% em termos reais e a carga tributária subiu de 29,41% para cerca de 37%. Como Velloso tem mostrado, o Orçamento vêm se tornando cada vez mais rígido, com os gastos obrigatórios saindo de 47% da despesa não financeira da União, em 1987, para 89%, em 2005. Uma parcela de 67% daquela despesa não financeira é representada por gastos de pessoal e benefícios do INSS. A Previdência do setor privado, aliás, é apontada como principal vilã da política fiscal e uma nova reforma é considerada fundamental para ajustar as contas públicas.

Em recente trabalho, Velloso mostrou que, se os gastos da União continuarem a crescer no ritmo dos últimos dez anos, a carga tributária teria de aumentar em quatro pontos porcentuais, ou R$ 80 bilhões, até 2014, para que os atuais superávits fossem mantidos.

Os críticos da política fiscal a ligam diretamente ao baixo crescimento, por dois canais. O primeiro são as altíssimas taxas de juros, que estão relacionadas à insegurança dos detentores de títulos do governo quanto à sustentabilidade da dívida pública, já que as despesas não param de crescer e o aumento da carga tributária não pode ser eterno. "O País precisa de um ajuste fiscal muito mais forte para trazer essa taxa de juros para baixo", diz o consultor Affonso Celso Pastore.

RENTABILIDADE

O segundo problema é o desestímulo aos investimentos produzido pela alta carga de impostos, que reduz a rentabilidade das empresas. O italiano Giorgio Zanet, sócio-gerente da Brasil Exportação de Mármores e Granitos, no Espírito Santo, explica que no momento a matriz da empresa, a italiana Marmi Bruno Zanet, está diante de um dilema: montar uma nova fábrica no Brasil ou na Índia. O Brasil ainda é o mais forte candidato, mas contra o País pesam impostos como o ICMS embutido na exportação de placas de pedras ornamentais, na etapa em que os blocos vão para as serrarias. "E as taxas de importação de equipamentos, mesmo com a desoneração já realizada, ainda são altas", acrescenta.

Outro lado da questão fiscal é a má qualidade do gasto público, apesar do seu tamanho crescente. Com o crescimento das despesas de pessoal, do déficit da Previdência e dos programas de transferência de renda, o espaço para investimentos públicos está cada vez mais comprimido. O investimento da União em transportes, por exemplo, caiu de 2% do PIB no final da década de 70 para 0,04%, nível atual.

Estudo de Marcos Mendes, consultor de Economia do Senado, mostra que as transferências federais para Estados e municípios, que cresceram 120% em termos reais entre 1995 e 2005, têm uma distribuição altamente irracional. As cidade médias nordestinas e da periferia das metrópoles, que têm grandes problemas sociais e forte carência de recursos, recebem proporcionalmente muito menos do que áreas mais desenvolvidas.

Mendes selecionou um exemplo. O município de André da Rocha, no Rio Grande do Sul, com apenas 1.113 habitantes no Censo de 2000, crescimento populacional de 0,7% e índice de desenvolvimento humano (IDH) de 0,81 (alto para o padrão brasileiro) recebe transferências federais anuais per capita equivalentes a R$ 1.121. Já o município cearense de Caucaia, com 250,5 mil habitantes, crescimento populacional de 4,8% e IDH de 0,72, recebe só R$ 74 per capita.