Título: Líder acumula série de fracassos
Autor: Reali Júnior
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/05/2006, Internacional, p. A24

Há duas atividades que o presidente Jacques Chirac aprecia acima de todas as coisas: em primeiro lugar, sua visita anual ao Salão da Agricultura, porque ele adora as vacas e acaricia suas ancas com ardor. Em segundo, ele adora viajar para o exterior - por exemplo, agora, para o Brasil e o Chile.

No estrangeiro, tudo lhe sorri. Ele tem atitude: alto, elegante, desenvolto, simpático, encantador, adora apertar todas as mãos que se estendem, sejam elas mãos chinesas, senegalesas, neozelandesas ou taitianas. Uma segunda vantagem é que Chirac abandona assim os ornamentos aveludados do Palácio do Eliseu e as intrigas que ali fervilham.

Um terceiro ponto de sua viagem ao exterior é que Chirac adora se convencer de que é um homem de esquerda. Quando está longe de Paris, ele dá vazão a sua alegria: defende o Terceiro Mundo, apieda-se da miséria de camponeses longínquos. Ele quer curar pessoas atingidas pela aids, propõe a taxação das passagens aéreas para tirar a África e a Ásia do século 19. Para se divertir um pouco, ele adora colocar bombinhas sob o traseiro dos americanos, o que funciona sempre. Nas semanas que antecederam a guerra no Iraque, quando desafiou Bush, sua glória mundial atingiu o apogeu. E quando se trata de uma visita a um país que ele ama sinceramente - como é o caso, com toda certeza, do Brasil -, ele exulta.

Esse é o esquema habitual. Neste ano, contudo, a viagem ao Brasil não se apresenta sob auspícios tão favoráveis. É fato que Chirac leva consigo, como faz há 40 anos, aquela atitude sedutora de bom moço que inflama os corações simples.

Infelizmente, seu corpo já dá sinais de fadiga. Com 74 anos, ele sofreu um acidente vascular cerebral há alguns meses. Nada grave. Exames recentes mostraram uma recuperação perfeita. O fato é que a formidável mecânica que é o corpo de Chirac recebeu um aviso.

Mas há coisas mais graves. O presidente também suportou vários colapsos políticos. Ele poderia retomar a fórmula brutal da rainha da Inglaterra, que confessou há alguns anos que estava vivendo um annus horribilis. O ano de Chirac é igualmente horrível: eleito presidente em 2002 com uma maioria esmagadora (porque os socialisvotaram nele por medo de ver o fascista Jean-Marie Le Pen ganhar), Chirac, desde aquele dia, só dilapidou os trunfos que tinha. Ele acumulou fracassos sobre ridículos. Primeiro erro: na tentativa de compelir o povo francês a aprovar por referendo a nova Constituição da União Européia, o presidente transformou esse referendo num plebiscito. E a Constituição foi rejeitada, o que jogou a Europa na confusão.

Segundo erro: ele se livrou de seu bravo primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin, que não era nenhum iluminado, mas modesto, laborioso e obediente, e o substituiu por um personagem exuberante, Dominique de Villepin. E Villepin não perdeu tempo. Em poucos meses, deu duas mancadas monumentais: a primeira foi propor um novo contrato de trabalho, mais flexível. A idéia em si não era má, mas ele a explicou mal, com sua habitual soberba. E fez toda a França, estudantil e operária, ir à rua. O deslumbrante Villepin foi à lona e teve de retirar seu projeto de reforma.

Mal ele se recompôs do fiasco, estoura sob seu nariz o caso sinistro do banco Clearstream, tão complicado que ninguém entende direito. Mesmo assim, um escândalo. Corrupção, mentiras, armadilhas... E Villepin, cada vez mais inflexível e pretensioso, fazendo o papel do vilão, levou a crer que tentou, com esse escândalo, desacreditar seu inimigo, o número 2 de seu governo e ministro do Interior, Nicolas Sarkozy. O resultado foi que, na semana passada, a popularidade de Villepin havia caído para 26%.

Mas onde está Chirac nisso tudo? No olho do furacão. Afinal, foi ele, com sua inépcia, suas obsessões, sua falta de visão, que forjou a máquina infernal em que o governo corre o risco de ser triturado. Todo mundo sabia que Villepin e Sarkozy, ambos interessados em disputar a presidência em 2007, se odeiam mortalmente. Chirac, certamente para se convencer de que é maquiavélico, não imaginou nada melhor que atrelar os dois inimigos na mesma parelha, Villepin como primeiro-ministro e Sarkozy como ministro do Interior. Foi seu terceiro erro. Desde a formação desse governo, os tiros vieram de todos os lados.

Quarto erro: Chirac observou a queda vertiginosa de Villepin sem esboçar a menor reação. E só ele, Chirac, teria o poder de debelar o incêndio, simplesmente derrubando seu primeiro-ministro e dando-lhe um sucessor. Ele não fez o menor gesto nesse sentido.

Aí está um belo mistério: como explicar que esse animal político astuto e experimentado que é Chirac se deixe arrastar pelas circunstâncias sem fazer nada para impedir a queda? No passado, o poderoso Chirac já se mostrou presa fácil da influência das criaturas que chamou para seu lado. Foi assim com um outro primeiro-ministro, Alain Juppé, que acumulou inépcias e acabou afundando.

Ninguém imagina como Villepin poderá se livrar da desgraça. Diante dessa catástrofe anunciada, Chirac parece atônito, paralisado. Acordará a tempo? Os danos já são grandes. Mas resta uma chance de milagre. Esse milagre seria que a carruagem meio desmantelada do governo consiga se arrastar até 9 de junho, isto é, o começo da Copa do Mundo. E que Zinedine Zidane, o capitão da equipe francesa, conduza seu time a algumas vitórias pelo menos. Quem diria, o destino do governo francês dependendo do futebol. Oremos por Zidane.