Título: Ao lado do Rio São Francisco, agricultores sofrem com a seca
Autor: Angela Lacerda
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/05/2006, Nacional, p. A14

Opositores do projeto de transposição defendem que prioridade seja retomada das obras locais de irrigação

Cansado de lutar contra a seca, Manoel Félix do Nascimento vendeu, em 1999, sua terra no município pernambucano de Sertânia, no sertão do Moxotó, e comprou um lote numa área de irrigação, em Sobradinho, na Bahia, ao lado do Rio São Francisco.

Ele tomou a decisão após ter lido um folheto de propaganda que dizia: "Projeto Sobradinho - um sonho de ontem se faz realidade hoje". A propaganda trazia até a maquete do Canal Serra da Batateira, com a informação de que a primeira fase estava concluída.

Manoel comprou 72 hectares, emprestou R$ 35 mil no Banco do Nordeste e plantou banana e pinha. Hoje é um homem amargurado. "Vi meu sonho se acabar", diz ele, instalado no meio de um projeto de irrigação que, apesar da propaganda, nunca foi concluído. Na seca que atingiu a região entre 2001 e 2002, Manoel perdeu toda sua plantação por falta de água.

A história dele é a mesma de muitos outros pequenos agricultores daquela região e de outras áreas ao longo do São Francisco: estão passando por dificuldades cada vez maiores por causa da falta de água, apesar de instalados ao lado de um dos mais caudalosos rios do País. A construção do Canal da Batateira foi paralisada por causa de irregularidades na obra, constatadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU), e há quase dez anos os agricultores aguardam uma solução. Mas existem outros projetos parados por falta de definições nos governos estaduais e federal.

Estima-se que chegue a 170 mil hectares o total das áreas nos arredores do rio que já receberam algum tipo de investimento em infra-estrutura para projetos de irrigação. Metade disso, no entanto, ainda não conseguiria produzir sequer um pé de alface.

Essa questão tem sido esgrimida com freqüência por opositores do projeto do governo federal de integrar as bacias do São Francisco, para levar suas águas a regiões a 400 quilômetros de distância. O governador da Bahia, Paulo Souto, do PFL, é um dos que insistem que, ao invés de gastar R$ 4,5 bilhões com a transposição, o governo deveria antes concluir as obras locais. Só no Estado que ele governa existem três grandes projetos com águas do São Francisco que estão paralisados - Salitre, Baixos de Irecê e Iuiú.

Existem poucas chances de o governo retomar as obras de transposição ainda este ano. A pedido do Ministério Público da Bahia, o Supremo Tribunal Federal concedeu uma liminar suspendendo o trabalho e é mínima a possibilidade de se ver o mérito da questão julgado ainda neste ano. É certo, no entanto, que o assunto fará parte do debate eleitoral. Os tucanos já estão ouvindo os governadores e políticos da região para fundamentar suas críticas à obra, que foi uma promessa de campanha de Luiz Inácio Lula da Silva.

Na área na qual o agricultor Manoel comprou suas terras, o projeto parecia perfeito. A propriedade receberia água da barragem de Sobradinho por gravidade, até o nível máximo de vazão permitido pela Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), para não comprometer a geração de energia elétrica. Abaixo desse limite, o projeto previa o uso de bombas para levar a água até a lavoura. Mas a prefeitura, que deveria comprar e administrar as bombas, nunca instalou nenhum equipamento. Na primeira seca que o agricultor enfrentou, toda a plantação morreu.

Para pagar o empréstimo bancário, ele vendeu 76% da terra, a preço de banana, e está recomeçando tudo: vai pegar um financiamento de R$ 6 mil no Banco do Brasil para desenvolver um projeto de ovinocaprinocultura. A barragem está cheia e, na avaliação dele, isso garante irrigação por gravidade durante dois anos.

A propaganda enganosa é só um detalhe na história mal contada do Canal Serra da Batateira. A obra foi completamente paralisada depois que o TCU tropeçou em irregularidades como falta de licença ambiental e superfaturamento. Àquela altura, o governo federal já tinha repassado R$ 20 milhões para a prefeitura.

De acordo com ex-vereador Manoel Messias (PV), que tentou abrir uma CPI municipal para apurar o caso, os R$ 20 milhões usados na construção de 5 quilômetros de canal dariam para construir 15 quilômetros.

Em alguns trechos, as placas de concreto usadas para revestir o canal estão caindo. Em outros existe apenas a imagem desoladora de buracos escavados na terra árida.