Título: A bola está no campo iraniano
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Fonte: O Estado de São Paulo, 01/06/2006, Internacional, p. A12

A oferta de Bush de uma negociação direta com o Irã é um passo atrás do abismo. Embora protegida por advertências e condições, representa uma virada depois de um quarto de século de guerra não declarada à liderança pós-revolucionária de Teerã. E depois de meses de especulações assustadoras sobre um confronto, ela provocou um suspiro de alívio quase audível em capitais da Europa e do Oriente Médio.

A declaração feita ontem pela secretária de Estado Condoleezza Rice foi a primeiro e sobretudo uma vitória interna de Washington. Ela ofereceu a prova mais clara de seus antecedentes na política externa e da influência declinante da ideologia neoconservadora no segundo mandato de George W. Bush. Rice, que sucedeu a Colin Powell no Departamento de Estado em 2005, tem perseguido uma linha pragmática ou "realista." Ela também trabalhou duro para reconstruir as relações com aliados tradicionais danificadas pelo unilateralismo passado.

A abordagem de Rice a tem colocado em crescente conflito com o vice-presidente Dick Cheney - o grande vilão do republicanismo de direita - e Donald Rumsfeld, o czar do Pentágono cujas habilidades para a luta minaram a situação de Powell. Mas os dois perderam terreno nos últimos meses, em grande parte por causa do Iraque. Acredita-se que eles se opunham à abertura para o Irã por ser uma "concessão" ao terrorismo e à chantagem. O mesmo fazia Israel. Falando na Casa Branca na semana passada, o primeiro-ministro israelense Ehud Olmert advertiu que as atividades do Irã representavam uma ameaça existencial para a qual não deveria haver nenhuma concessão. Mas ontem Rice deixou cristalino quem está dando as cartas em Washington.

A formulação de seu pronunciamento sugeriu também que a administração está ouvindo os europeus de novo - uma reviravolta logo elogiada pelo encarregado de política externa da UE, Javier Solana. "Acertamos com nossos parceiros europeus sobre os elementos essenciais de um pacote contendo tanto benefícios, se o Irã fizer as escolhas certas, e os custos se ele não as fizer", disse Rice.

Mas, pela primeira vez, ela aceitou abertamente a força do argumento usado publicamente pela chanceler alemã Angela Merkel, e privadamente pela Grã-Bretanha e a França, de que a recusa dos EUA de participarem diretamente em negociações com o Irã estava enfraquecendo a posição ocidental. De sua maneira rabugenta, a Rússia enviou mensagens parecidas. E Bush telefonou a Vladimir Putin antes do anúncio para lhe dizer que estava pronto para conversar - mas queria o apoio da Rússia caso os iranianos não quisessem jogar o jogo.

Rice disse que havia retirado do Irã sua "última desculpa" para recusar um acordo. E nisso estava uma outra virada. Depois de terceirizarem o problema, os EUA tomaram a frente.

"A oferta poderá ser uma grande abertura para negociações", disse Alex Bigham, um analista do Centro de Política Externa, em Londres. "Embora a UE tivesse o pacote certo, não estava claro que eles o poderiam entregar. Com os EUA a bordo, o esforço internacional para quebrar o impasse tem a força para chegar a um acordo. As garantias de segurança para o Irã poderiam ser uma parte crucial da acomodação."

A virada devolve a bola para o campo iraniano. Em certo sentido, o pronunciamento de Rice foi a resposta à carta aberta escrita por Mahmud Ahmadinejad. Apesar da retórica antiocidental e antiisraelense do presidente, o Irã tem se oferecido para discutir diretamente com os EUA. Ao admitir o direito do Irã à energia nuclear para uso civil e acenar com uma ampla gama de incentivos, Rice chamou o blefe de Ahmadinejad. Se, depois de considerações sérias, o Irã rejeitar a oferta, os EUA poderão dizer que fizeram o melhor que podiam.

E as nações ocidentais, mais Rússia e China, quase certamente concordarão. Será muito mais provável a união na busca de uma ação coercitiva contra o Teerã no Conselho de Segurança da ONU. Se o Irã aceitar, existirão longas e difíceis negociações no horizonte sem garantia de sucesso. Mas uma terceira guerra no Oriente Médio poderá ter sido evitada, ao menos por enquanto.