Título: Gastos fora da lei
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/05/2006, Notas e Informações, p. A3

A Lei de Responsabilidade Fiscal, uma das mais importantes inovações políticas e administrativas dos últimos 20 anos, ainda não pegou em todo o Brasil. Com a legislação, em vigor desde 2000, prefeitos e governadores ficaram sujeitos a um controle financeiro muito mais severo que o de outros tempos. Mas a vigilância concentrou-se no Executivo. Foi muito menos intensa a pressão sobre o Legislativo e o Judiciário. Segundo números do Ministério da Fazenda, levantados e divulgados pelo Estado, dez Assembléias estaduais vêm gastando com pessoal mais do que os valores permitidos por lei. O mesmo problema ocorre no Distrito Federal.

Pela Lei de Responsabilidade Fiscal, os Estados podem gastar com pessoal até 60% da receita corrente líquida. Cada poder deve contribuir para o cumprimento da regra. O limite do Executivo é 49%, o do Judiciário, 6%, o do Ministério Público, 2%, e o do Legislativo, 3% (incluídos os salários do Tribunal de Contas, órgão de assessoria da Assembléia).

Na relação publicada pelo Estado, as despesas com pessoal variam de 3,43% no Maranhão a 5,49% em Rondônia. Em seis Estados , essas despesas foram superiores a 4% da receita corrente líquida. No Distrito Federal, chegaram a 4,31%. O abuso tem chamado a atenção de autoridades do Ministério da Fazenda e até da Polícia Federal, que em Rondônia descobriu uma folha paralela de pagamentos com cerca de 380 beneficiários.

As Assembléias e Tribunais de Contas empregam, segundo a reportagem, artifícios diversos para disfarçar o excesso de gastos. Em alguns Estados, não se incluem nas contas o pagamento de aposentadorias e pensões. Mas a lei só permite essa exclusão quando o dinheiro for proveniente de contribuições de segurados, de compensações vinculadas à contagem recíproca de tempo de trabalho e de arrecadações diretas de fundos especiais.

Outro artifício apontado na reportagem foi usado no Rio de Janeiro, onde os gastos com inativos do Judiciário e do Legislativo foram transferidos, pelo Tribunal de Contas, para a cota do Executivo.

O caso do Distrito Federal é mais complexo, porque a Assembléia pretende ter um limite equivalente ao das Câmaras Municipais (6%). O Distrito Federal é equiparado aos Estados, na Lei de Responsabilidade Fiscal, mas, como não tem Judiciário nem Ministério Público separado, fica aberto um amplo espaço para discussão.

Esses dados confirmam, em primeiro lugar, uma velha distorção da política nacional. No Brasil, tende-se a confundir responsabilidade fiscal com responsabilidade do Executivo. As autoridades do Legislativo e do Judiciário comportam-se, com freqüência, como se a saúde financeira do setor público fosse assunto para preocupação exclusiva dos administradores do Tesouro. Assim, caberia às autoridades fazendárias cuidar do equilíbrio das contas públicas, ficando os gestores dos demais poderes à vontade para determinar as despesas de seus setores. Essa liberdade foi invocada, várias vezes, como condição para a autonomia dos poderes.

Na prática, essa pretensão é bem-sucedida e também isso é comprovado pelas informações daquela reportagem. Até as autoridades do Tesouro Nacional são cautelosas, quando se trata de apontar o mau desempenho fiscal de legisladores e juízes dos Estados.

As chamadas pessoas "comuns" não fazem muita cerimônia, quando se trata de falar mal da Justiça e das Assembléias. Mas não exercem uma vigilância efetiva sobre a gestão financeira do setor público. Em primeiro lugar, não é parte da tradição brasileira a preocupação com os limites de gastos governamentais. Isso poderá mudar, talvez, na medida em que as pessoas tenham uma consciência mais clara de sua condição de contribuintes. Em segundo lugar, mesmo que tenham essa consciência, seu poder de fiscalização será limitado, em vista da complexidade técnica do problema.

O controle, portanto, continuará a depender, quase exclusivamente, do próprio poder público. Na prática, os controladores serão mesmo o Tesouro Nacional e o Ministério Público. O Judiciário agirá quando for acionado, principalmente em tempos de campanha eleitoral.