Título: Sobrou para mim
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/05/2006, Espaço Aberto, p. A2

Logo que Jospin foi derrotado na França, o socialismo abrigou-se na vitória de Lula como seu novo ícone mundial, com atributos incomuns, como o de ser um ex-operário, líder sindical, que chegava ao governo do país mais importante da América do Sul. O Fórum de São Paulo, de iniciativa do Partido Comunista de Cuba - esse anacronismo depois da queda do Muro de Berlim e da URSS -, reuniu representantes na capital do maior Estado brasileiro, todas as representações da esquerda radical, com o objetivo declarado de "fazer dar certo o que não deu na Europa do Leste". Reiterava a surrada tese de que Stalin havia traído Marx, o que precisava ser corrigido. Mikhail Gorbachev não escapava da denúncia, apesar de que, mesmo depois de vencer, em agosto de 1991, os golpistas inconformados com a perestroika e aparentemente invencíveis (o comandante das Forças Terrestres, a KGB, o secretário do Comitê Central e até o chefe de sua segurança pessoal) defendiam o socialismo e poupavam Lenin. A recusa das tropas terrestres de atender ao comandante golpista garantiu a Gorbachev voltar da Criméia, onde estava em férias, ainda o presidente que preparava o Tratado da União socialista, que desejava com face humana pela glasnost. Só muito tempo depois é que, nas suas memórias, escreveu : "De maneira geral, a antinomia socialismo/capitalismo, que se impôs desde a metade do século 19, me parece, hoje, caduca." A frase diz mais a Marx, não o jovem, mas o que escreveu o primeiro tomo de O Capital, porque os outros foram escritos por Engels, com apontamentos do amigo e protegido. Fidel Castro, que não era comunista até 1951, insiste ainda hoje nessa caducidade e se mantém como o mais velho ditador do mundo.

Ao Fórum de São Paulo compareceu Lula, como a estrela maior do encontro. Fazia parte de seu plano de poder a liderança da América do Sul. Todos os candidatos da esquerda, Kirchner inclusive, vieram ao Brasil pedir-lhe apoio. Na constituição de uma frente antiamericana. Tudo ia muito bem até que, deposto, 24 horas depois o medíocre coronel Chávez voltou ao governo pela mão do Exército, em especial os pára-quedistas. Antiamericanista furibundo, de início vinha beijar a mão de Lula e pedir conselhos. Ao sentir os efeitos da ladroagem do PT e, no momento, a perda de popularidade de Lula, tomou-lhe a bandeira da liderança da esquerda sul-americana, tirando partido do alto preço do petróleo. Ao assumir o governo, o petróleo valia US$ 28 o barril. Devido à guerra do Iraque e à ditadura do cartel da Opep, já passou de US$ 70. Apesar disso, a pobreza aumentou na Venezuela, mas os dólares fáceis permitiram a Chávez patrocinar eleições, de um vago socialismo, em países menores. Lula chegou a criticá-lo nos bons tempos em que ele vinha ao Brasil para aconselhar-se, "porque brigara com todo mundo ao mesmo tempo". Salvou-o, de um plebiscito que certamente o derrubaria, a abundância de dólares distribuída pelos pobres à maneira de dono do país, para fazer algo melhor que o Bolsa-Família, ajudado pelas centenas de médicos cubanos. Vai constantemente a Cuba venerar Fidel, decepcionado o ditador com Lula, que já não pousa em Cuba quando vai ter com o "companheiro Bush", nos EUA.

O caudilho, que já está no governo há muitos anos, tem planos para manter-se até 2025. De vitória em vitória de seus candidatos ostensivamente apoiados, cresceu-lhe a ambição. Compra milhares de fuzis da Rússia, navios e armamentos da Espanha e decide constituir uma guarda bem armada de "defensores da revolução bolivariana", a exemplo dos Comitês de Defesa da Revolução, ainda hoje existentes em todos os bairros em Cuba. Visitou o coronel Kadafi, na Líbia. Dá-se, agora, ao topete de criticar publicamente Lula: "Mudou, rendeu-se à oligarquia." Alguém lhe ensinou a repetir o que não aprendeu no currículo dos pára-quedistas: "O capitalismo é a desgraça do mundo." Nunca terá lido Marx, com certeza, eximindo-se de fazer referência ao velho Karl. Pensa, porém, que o está reabilitando da derrota da URSS e da blasfêmia chinesa de criar um chamado "socialismo de mercado". Dentro dessa teoria, um dos candidatos que sua revolução bolivariana conquistou foi a eleição prevista, mas ajudada, de Evo Morales, para transformar o líder cocaleiro no chefe de Estado de um pobre país que ironicamente alguém define como "uma ilha cercada de terra por todos os lados". Enganaram-se os que apostavam nele, no seu nacionalismo bizarro e primitivo, na volta à aspiração do porto no Pacífico que a Bolívia perdeu na guerra com o Chile. Ao contrário, Morales está ligado cada vez mais ao caudilho venezuelano, cuja ira contra Bush o leva a dizer que existe um plano americano para matá-lo, que motivou um senador, se não me engano, mas de menor importância, a dizer que, se Chávez diz isso, o correto é passar da ameaça ao fato, "pois é muito melhor que uma guerra causada por ele".

Evo Morales faz do nacionalismo uma caricatura. Como disse Vargas Llosa, "o nacionalismo converte em religião algo que na sua origem é perfeitamente legítimo". É o caso da Bolívia, na sua aspiração de eliminar a miséria de seu povo, depois de fornecer, no período colonial, sua riqueza em prata e ouro aos espanhóis. Morales escalou o Brasil para ser o imperialista odiado na figura (inicial apenas) da Petrobrás, que comprou ao seu país duas refinarias estatais que só davam déficits, numa licitação universal a que só o Brasil compareceu et pour cause. Põe espetacularmente tropa para cercar as refinarias, afirma em Viena que as expropriará sem nenhuma indenização e, finalmente, ameaça: "O Acre foi trocado por um cavalo." Sobrou para mim. Se ele resolver rasgar os Tratados de Ayacucho e de Petrópolis - como Hitler rasgou tratados, ao dizer que não passavam de papéis -, ficarei sem nacionalidade. Não só eu, mas só para citar xapurienses como eu, Adib Jatene, mestre emérito dos cardiologistas, o jornalista Armando Nogueira e Chico Mendes. A menos que se exume Plácido de Castro, na sua epopéia do "Deserto Ocidental".