Título: Evo acusa múltis de conspirar contra ele
Autor: Paulo Moreira Leite
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/05/2006, Economia & Negócios, p. B4

Presidente boliviano politiza o debate para justificar seus atos

O presidente da Bolívia, Evo Morales, decidiu politizar de vez o debate sobre aumento do preço do gás exportado para o Brasil e a Argentina, que começa a ser negociado nesta quarta-feira. Num só fim de semana, Evo disse que quer o aumento de U$ 2 dólares, equivalente a 60% do preço de hoje, e também fez um discurso acusando as "empresas transnacionais de conspirar" contra seu governo.

O comportamento do presidente é compreensível. Depois de eletrizar o país com um decreto nacionalizante, que fez sua popularidade disparar, Evo precisa da mobilização popular para convencer os interlocutores da Bolívia nas negociações a aceitar um reajuste que justifique tanto falatório. O assunto pegou. Quem andasse ontem pelo centro de La Paz, veria ambulantes enchendo o bolso com a venda das edições completas do "Decreto Supremo" que nacionalizou o gás e o petróleo.

"O eleitorado andava meio aborrecido com o governo, que não conseguira mostrar direito para que veio", afirma o professor Raul Prada, candidato à Constituinte pelo MAS, o partido de Evo. "O decreto mostrou que Evo tem rumo e é fiel aos compromissos de campanha."

Desde então, o Palácio Quemada tem feito o possível para construir um consenso nacional em torno da nacionalização do gás. Não é uma tarefa simples, pois envolve a capacidade de articulação com forças poderosas da sociedade boliviana, nem todas simpáticas a Evo e ao seu governo.

A bancada de deputados do MAS, que tem maioria de votos na Câmara, assegura apoio total e absoluto. Eles são políticos de base popular, eleitos em regiões urbanas e bairros pobres. A bancada de senadores, que tem 12 votos num plenário de 27, também.

Fora dali, onde se encontram milhares de organizações sociais que fizeram Evo chegar ao poder, existe uma situação ambígua: a maioria desses movimentos encontra-se em lua-de-mel com o governo, como se viu nos últimos dias, quando premiaram o presidente com comícios gigantescos em vários pontos do país. Mas o ambiente de desconfiança é maior do que se poderia imaginar.

Entre os empresários, o governo conseguiu um apoio morno. Eles apóiam a idéia da nacionalização e, deixando de lado os homens de negócio da Província de Santa Cruz, que são adversários políticos do governo, fazem críticas aceitáveis ao ambiente de conflito que se criou para anunciar o decreto. Também temem que a criação de um ambiente de incertezas políticas na Bolívia acabe criando dificuldades para o país conquistar linhas de crédito no mercado internacional.

Essa realidade explica o comportamento do presidente, cada vez mais obrigado a contar com seu eleitorado original, dos aflitos e dos carentes, para garantir apoio político.

A Central Obrera de Bolívia, que, mesmo esvaziada, mantém uma mística política respeitável, criticou o decreto por considerá-lo moderado demais. A COB queria que o governo estatizasse todas as empresas de gás e petróleo sem pagar um tostão. Embora soubesse que um político de idéias mais moderadas como Evo não assinaria um decreto dessa natureza, a COB finge que ficou decepcionada e nem dá bola à discussão do preço de exportação.

"Esse não é um problema dos trabalhadores," afirma Salustiano Laura, diretor-executivo da entidade. "Nem paramos para estudar qual a melhor posição; só vamos nos preocupar de verdade com isso nos próximos dias."

O tablóide Nação Aymara-Quechua, a mesma de Evo, passou as ultimas edições em críticas fortíssimas ao governo. Na última, estampava na primeira página uma piada com as iniciais do MAS, que, em vez de Movimento ao Socialismo, teria se transformado em Movimento ao Servilismo.

"O gás foi uma das bandeiras da vitória do Evo", afirma o líder da bancada de deputados do MAS, Cesar Navarro. "Você pode contar a história de sua presidência a partir dessas lutas."

Evo é o herdeiro de um Estado que desabou em 2003, quando o presidente Sanchez de Losada foi deposto pelas mobilização popular. O motivo principal foi um contrato de venda de gás para os Estados Unidos e o Chile, país com o qual a Bolívia tem rivalidade histórica.

Evo Morales foi o líder dessas manifestações e fez um acordo que permitiu a posse do vice-presidente Carlos Mesa. Por pressão do MAS e das entidades do movimento social, no ano passado ocorreu um plebiscito com cinco perguntas que envolviam a nacionalização. Todas as repostas foram a favor da nacionalização, por margens que nunca ficaram abaixo de 80% dos votos.

"Essa população está pronta mesmo a se sacrificar, se considerar que seguirá sendo vítima de uma injustiça das petroleiras", afirma o deputado Cesar Navarro. "Ninguém quer que a Bolívia vire um país fantasma, com riquezas exauridas e a população sem chances de viver."

Por sacrifício, o deputado entende: caso ocorra um impasse prolongado entre as empresas e o governo em torno de um preço considerado razoável, a população poderá concordar em enfrentar um período de dificuldades suplementares até que se chegue a uma solução.

Para o senador Antonio Peredo, líder do MAS, "a população se deu conta de que tinha riquezas que só ela não podia usufruir, embora fosse suas." Peredo explica: "Nós, cidadãos do país mais pobre da América do Sul, vendemos gás a preço barato para os países mais ricos e desenvolvidos, que são o Brasil e a Argentina."

Depois de uma pausa, o senador acrescenta: "Para a Argentina, vendemos gás a preço solidário, em razão da crise que o país atravessou. Mas eles nos vendem diesel sem solidariedade nenhuma: cobram 20% mais do que poderiam."