Título: Agruras de um professor no Fed
Autor: Roberto Macedo
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/06/2006, Espaço Aberto, p. A2

Continua a polêmica em torno do desempenho de Ben Bernanke como presidente do Federal Reserve, o Fed, como é chamado o banco central dos EUA. Isso quatro meses depois de confirmado no cargo, no qual sucedeu ao mitológico Alan Greenspan, que nele ficou 18 anos.

Ambos têm apelidos, mas, enquanto Greenspan é elogiosamente chamado de "Maestro", Bernanke é jocosamente referido como "Helicóptero", por conta de uma afirmação sua, em 2002, de que a única maneira de combater uma deflação seria jogar pacotes de dinheiro de uma aeronave desse tipo, um raciocínio tipicamente acadêmico.

Outro contraste é que Bernanke é originalmente pesquisador e professor, cujo prestígio até aqui veio do meio acadêmico, onde militava. Antes de chegar ao Fed, passou pelo governo, mas em posições de assessoria e aconselhamento. No novo cargo tem de lidar com os mercados financeiros, muito duros na avaliação dos que chegam a uma posição como essa. Bernanke é como um calouro nas mãos de veteranos arrogantes e prepotentes.

Um novo e forte surto de críticas veio na seqüência de um pronunciamento seu na segunda-feira, do qual o noticiário destacou várias frases. Assim, depois de constatar um aumento dos preços de energia e do núcleo do Índice de Preços ao Consumidor, dos EUA, ele concluiu que "esses fatos são indesejáveis". Essa preocupação com a inflação foi interpretada por amplos segmentos dos mercados financeiros internacionais como prenúncio de que na sua próxima reunião o Fed aumentará de novo a taxa básica de juros daquele país, que se encontra em 5% ao ano, uma taxa que freqüenta os sonhos dos brasileiros.

Essa interpretação levou instantaneamente a uma reação desses mercados, pois, entre outros efeitos, maiores taxas de juros nos EUA diminuiriam a atração de aplicar dinheiro em outros países, em particular os chamados emergentes, entre os quais o Brasil. Além disso, com taxas de juros maiores a expectativa seria de um menor crescimento da economia mundial, prejudicando os lucros das empresas. Um dos resultados foi uma queda generalizada das bolsas de vários países, com a brasileira caindo 3,17% na segunda-feira. Os jornais noticiaram quedas também fortes nas bolsas européias só na terça-feira, pois já estavam fechadas na segunda quando o resultado do exercício de hermenêutica sobre o pronunciamento de Bernanke se espalhou pelos mercados ainda acordados.

Outras frases desse pronunciamento, entretanto, não justificariam necessariamente essa interpretação, pois ele também afirmou que "o consumidor está mais cauteloso nos gastos" e "a moderação prevista no crescimento econômico já parece estar em marcha". Comentou ainda que o mercado imobiliário dos EUA, cujo comportamento tem sido comparado ao de uma bolha, já se está desacelerando. E concluiu que, nessas condições, "... a política monetária deve ser conduzida com grande cuidado e com pleno acompanhamento da evolução das perspectivas da economia", o que parece trecho de uma das insossas atas das reuniões do Conselho de Política Monetária (Copom) brasileiro.

Portanto, no seu conjunto as declarações de Bernanke mostraram uma preocupação com a inflação, mas também diagnosticaram um comportamento da economia que pode aliviar essas pressões e dispensar um novo aumento da taxa básica de juros. O que se percebe é que o presidente do Fed, a exemplo das autoridades monetárias de outros países, hoje e no passado, procurou ficar no diagnóstico dos fatos, sem dizer que haveria necessariamente um aumento da taxa básica de juros, cujo anúncio, se for o caso, só virá como resultado da próxima reunião do Fed, nos dias 28 e 29 deste mês.

Nessas condições, em lugar de culpar quem falou, pode-se também atribuir o chacoalhar dos mercados à interpretação que eles mesmos fizeram do que disse Bernanke. Não é incomum que o dito por uma pessoa leve a diferentes interpretações.

Há, evidentemente, um problema de comunicação, exacerbado pelas origens profissionais de Bernanke. Na vida acadêmica as pessoas se preocupam menos com o que falam, inclusive para dar vazão às idéias e testá-las entre os que as ouvem. Em geral o processo se esgota nesse âmbito, sem repercussões em mercados sensíveis como os financeiros. Já no governo há acadêmicos que têm dificuldades ao fazer adequadamente o ajuste exigido pelas características do cargo. Não é que não percebam a necessidade disso, mas, mesmo cuidando para "efetivamente falar o que gostariam de dizer", não é possível ter controle sobre a interpretação do que foi afirmado. E mais: quando alguém como Bernanke vira um personagem que parte da mídia vê como um trapalhão a fazer declarações de conteúdo ou de interpretação insólitos, ele passa a ser objeto de maior atenção e cobrança, o que eleva ainda mais o potencial de problemas de comunicação.

Como sou igualmente ligado à academia e já estive no governo, onde observei também a experiência de outros nas mesmas condições, só vejo uma saída para o professor Bernanke: a de ficar calado por algum tempo e limitar pronunciamentos a textos escritos, como a ata das reuniões do Fed, estas redigidas por várias cabeças e muitas mãos, até que a confiança em sua pessoa se estabeleça pelas suas ações e decisões.

Enfim, novo no cargo, ainda "amaciando" e visado pela mídia, Bernanke, acadêmico brilhante, se vê tragado por um processo cujo controle exige não alimentá-lo com novas falas até que a compreensão entre as partes se estabeleça com trivialidade. Caso contrário, a continuidade do desentendimento poderá levá-lo até mesmo ao afastamento do cargo.

São agruras comuns a professores e a outros que fazem seu noviciado em cargos como esse.

Roberto Macedo, economista (USP), com doutorado pela Universidade Harvard (EUA), pesquisador da Fipe-USP e professor associado à Faap, foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda