Título: A guerra perdida
Autor: Gilberto de Mello Kujawski
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/06/2006, Espaço Aberto, p. A2

Afinal, o que é que se passou em São Paulo entre os dias 12 e 15 de maio de 2006? Foram quatro dias e quatro noites de terror e sangue, que paralisaram a cidade e tomaram de pavor os paulistanos, mas até agora ninguém sabe o que de fato aconteceu. As autoridades só apresentam explicações parciais e discutíveis, a imprensa não consegue uma visão clara do ocorrido, os especialistas demoram-se em doutas dissertações faladas e escritas que podem até nos ensinar bastante, mas não ferem o problema em seu âmago.

Os juristas, cada qual em sua área, fornecem opiniões especializadas, mas restritas. Nenhum jurista se pergunta, por exemplo: até que ponto as ações atribuídas ao PCC ultrapassam o limite da infração penal grave, do crime comum, para invadir a área da subversão, da rebelião, da insurreição armada contra o próprio Estado-instituição? Houve dezenas de homicídios, incêndios de ônibus, ataques a delegacias, bancos, etc., mas tudo isso num contexto "político" até então inédito: o clamor do crime organizado contra a ordem constituída, o desafio do tráfico às forças de repressão para mostrar quem são os mais fortes. O PCC age como uma organização militar, fortemente hierarquizada, disposta a confrontar o poder de modo a envolver com seus tentáculos toda a sociedade. Consta que o PCC compôs até um hino para glorificar seus feitos e que dispõe de candidatos a deputado, por ele financiados, nas próximas eleições.

A promiscuidade com o crime avança a passos largos no País. Primeiro, a promiscuidade entre o governo e o crime, em nível político, com o farto cortejo de fatos e provas sobre o mensalão, colhidas nas CPIs - e comprovadas de forma definitiva e insuspeita pela Procuradoria-Geral da República, para quem ainda tivesse dúvida. Segundo, em nível mais subterrâneo, articula-se a promiscuidade entre o crime e os agentes encarregados de reprimir o crime, mediante a corrupção sistêmica de funcionários pelo dinheiro proveniente do tráfico. E terceiro, o que é bem mais grave, a promiscuidade entre o tráfico de entorpecentes e a própria sociedade, dominada pela escalada assustadora do consumo da droga, de todo tipo de droga, em todas classes sociais e em todas as idades. É a convivência habitual e escancarada da sociedade com a droga que faz da guerra contra o tráfico uma guerra perdida. Nada há a fazer quando a sociedade em massa adere a qualquer prática legal ou ilegal. A repressão é minada pela base e se mostra inútil em larga escala e a longo prazo. É o que se dá na guerrilha, por exemplo. Quando os guerrilheiros contam com a cumplicidade da sociedade local, nem o mais poderoso exército do mundo pode vencê-la. Por exemplo, Napoleão na Espanha. Ou os Estados Unidos no Iraque.

O crime organizado, cada vez mais próximo dos padrões da máfia, coloca-nos face a face com a figura do grande criminoso, estampada nos líderes das organizações celeradas. O grande criminoso distingue-se do criminoso comum e merece lugar de destaque na criminologia. Ele não tem o menor escrúpulo em matar e desconhece o medo de morrer. Se pudesse escolher entre a prisão perpétua e a pena de morte, é provável que optasse por esta. O grande criminoso é insensível, inclusive à dor física e à tortura, sempre frio e arrogante. Astuto e cerebral, o grande infrator, empedernido no crime, é montado peça a peça como impiedosa máquina de matar, roubar e extorquir dinheiro. (E no entanto, em sua frieza metálica, esconde algumas fraquezas imprevistas. Por exemplo, é sujeito à superstição e a laivos sentimentais. O capo mafioso chora e estremece ao ouvir o bel canto.)

Tudo isso para dizer que o grande criminoso, temido pelos comparsas e respeitado por sua autoridade, é um tipo muito difícil de controlar e impossível de dobrar. Com ele não há acordo. Mesmo internado em presídio de segurança máxima, sem celular nem comunicação visível com terceiros fora das grades, sabe infiltrar-se e dar ordens aos peões. O isolamento dos presos mais perigosos, a proibição do celular e das visitas são medidas paliativas e provisórias.

O crime organizado tem sua espinha dorsal no tráfico. Por isso não pode ser resolvido por nenhuma reforma do sistema penitenciário. Para quebrar a espinha dorsal do crime organizado não há outra coisa a fazer senão eliminar o tráfico, retirando da circulação a pessoa do traficante. Falamos da descriminação (controlada) da droga. Claro que não é a solução ideal, mas não há outra à vista. Medidas repressivas têm seu limite e são anuladas pela cumplicidade crescente da sociedade com o tráfico, mediante o consumo desenfreado, desde o habitante da favela até o frívolo hedonista da alta burguesia. A guerra contra o crime organizado não está perdida. Mas a guerra contra o tráfico, esta, sim, é uma guerra perdida . E quando não se pode ganhar a guerra, a solução indicada é o armistício, a suspensão ou supressão das hostilidades, opção muito melhor e mais digna do que a vergonhosa rendição ou capitulação.

Porque ninguém se iluda. O crime organizado, comandado das prisões, apenas submergiu, mas vai continuar em escalada crescente. E quando voltar à tona promete alcançar juízes, altas autoridades e até jornalistas. O confronto que se esboça e já se faz sentir não é mais o da sociedade com infratores comuns, e sim o da sociedade com organizações subversivas poderosas, planejando varrer o País com a devastação da guerrilha urbana. Marcola, do fundo do cárcere e agindo na sombra, pode tentar repetir Marighella, só que sem o menor idealismo político e usando os métodos mais espúrios. Recursos não lhe faltam. Consta que a renda mensal arrecadada pelas facções criminosas no tráfico atinge nada menos que R$ 2 milhões.

Gilberto de Mello Kujawski, jornalista e escritor, é membro do Instituto Brasileiro de Filosofia E-mail: gmkuj@terra.com.br