Título: O comandante honoris causa
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Fonte: O Estado de São Paulo, 08/06/2006, Notas e Informações, p. A3

O presidente Lula estava - como sempre - em campanha eleitoral, dessa vez no Ceará, quando soube do ultraje perpetrado no Congresso Nacional pela turba de liderados do seu companheiro Bruno Maranhão, secretário de Movimentos Populares do PT e, nessa condição, membro da Executiva Nacional do partido e da comissão partidária incumbida de conduzir a operação sucessória do chefe. "Muito irritado", segundo o relato de um ministro que o acompanhava, disparou uma pergunta retórica - "perderam o juízo?" - que conduz a uma segunda: em que planeta viveu ele desde outubro de 1997?

Foi quando 600 baderneiros invadiram o Ministério do Planejamento, onde ficaram 11 horas e depositaram um peru na mesa do então titular Antônio Kandir, na primeira de uma seqüência de invasões invariavelmente impunes de dependências do poder público. Na realidade, os trogloditas do Movimento de Libertação dos Sem-Terra (MLST), que apenas por uma letra da sigla se distinguem do MST que os gerou, praticaram mais uma ação de crime organizado, típica desses sem-lei e propositalmente sem existência jurídica (para os movimentos não serem responsabilizados penalmente), empenhados, sob a bandeira da reforma agrária, em derrubar a "democracia burguesa" e as instituições do Estado.

Já o presidente da República nunca teve juízo - para dizer o mínimo - diante da delinqüência recorrente, subsidiada com dinheiro do contribuinte, dos primatas do radicalismo. Muito ao contrário, dele se pode afirmar que se comportou, mesmo depois de chegar ao governo, como o seu comandante honoris causa, recebendo-os em palácio, fazendo-se fotografar com o boné vermelho da organização na cabeça. Conferiu-lhes, em suma, a condição de interlocutores legítimos do Executivo, como se as suas reivindicações aparentes sempre se exprimissem nos marcos da legalidade. Não faz nem três meses que eles invadiram um centro agronômico de pesquisas no Rio Grande do Sul, pondo abaixo 20 anos de trabalho. Mudou por acaso a relação de Lula com os cabeças da malta que ele jamais ousou repudiar?

A bem da verdade, Lula foi precedido no Planalto por um governante que tratou com notória tibieza as invasões de terras (primeiro as improdutivas, depois também as produtivas) e de instalações oficiais, em um festival de depredação de propriedades privadas e públicas. Dos atos de banditismo não raro estimulados pelo álcool - um número indeterminado de invasores do Congresso, anteontem, mostrava sinais de embriaguez -, não escapou, como se recorda, a fazenda da família do então presidente Fernando Henrique, em Minas, em outubro de 2001. Impunes e prontos para outra, os ocupantes a deixaram conspurcada, deliberadamente imunda e sem nenhuma garrafa de bebida intacta. Não há nada de novo, pois, sob a treva do vandalismo.

O antecessor de Lula pelo menos editou uma medida provisória, já convertida em lei, proibindo a desapropriação, para fins de reforma agrária, de terras invadidas. Tampouco os invasores poderiam reivindicar o assentamento. Ora, o que fez o atual presidente? Fingiu que a lei não existe. Desse modo, observou ontem neste jornal a colunista Dora Kramer, "deu a senha" para a escalada de afrontosa truculência que conspurca a expressão justiça social cada vez que é invocada pelos organizadores, com profissionalismo e fartura de recursos, de agressões fascistas como a desta terça-feira. Enquanto isso, acusa a jornalista, "as instituições não se deram ao trabalho de dar ouvidos aos produtores rurais, os mais diretamente ameaçados pelos vândalos, que há tempos vêm alertando para o perigo que eles representam para o Estado de Direito".

E, mesmo depois do ataque sem precedentes sofrido pelo Congresso, o máximo que Lula fez foi mandar o Planalto emitir uma nota condenando a selvageria que "deve ser tratada com o rigor da lei". Dada a extrema gravidade do ocorrido, era de esperar que o presidente da República fosse além dessa reação "protocolar", convocando uma rede nacional de rádio e televisão para manifestar ao País, de viva voz e em termos compatíveis com a dimensão do acontecimento, a sua repulsa pela depredação da Casa das Leis e a sua aversão pelos seus autores, incentivadores e cúmplices. Mas como esperar isso dele, que é o principal cúmplice dessa delinqüência organizada à qual entregou o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Incra?