Título: Família Zebu
Autor: Xico Graziano
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/05/2006, Espaço ABerto, p. A2

Capital do Zebu. Assim é conhecida Uberaba, no Triângulo Mineiro, cidade que se orgulha de sediar a Expozebu, símbolo da pecuária mundial. Tecnologia e negócios se misturam há 72 anos. Uma história de sucesso.

Por trás dela, a ABCZ, a Associação Brasileira dos Criadores de Zebu, a mais querida representação rural do País. A entidade agrega 15 mil associados e é responsável pelo registro genealógico de dez raças, entre elas a Nelore. O cerne da pecuária nacional.

O gado zebuíno origina-se na Índia. Importações de animais trouxeram o primeiro surto de crescimento do rebanho no início do século passado. Falecido na Índia em 1918, com apenas 27 anos de idade, o pecuarista João Borges é pioneiro e mártir dessa verdadeira epopéia.

A empreita não era difícil apenas pela travessia dos mares. Desencadeou-se na época uma inusitada disputa entre paulistas e mineiros. Os pecuaristas de São Paulo defendiam a seleção do gado Caracu, de origem européia, enquanto os mineiros aprovavam o boi indiano. Virou a guerra do Zebu.

Durante quase duas décadas políticos e pecuaristas brigaram por uma causa insólita. Os conservadores, que combatiam a vinda do gado "selvagem", perderam a parada. Os audaciosos mineiros, aventurados pelo exterior atrás de genética nova, triunfaram. Sorte do Brasil.

O Zebu pode ser facilmente reconhecido pelo cupim, uma protuberância que a rês ostenta no dorso, corcova inexistente no gado de origem européia. Mas foram a rusticidade e a boa fertilidade que levaram à supremacia das raças zebuínas. Na expansão da fronteira agrícola, adentrando os cerrados de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul, o gado sagrado mostrou sua força.

Acontece que, na Índia, o consumo de carne bovina é proibido por motivos religiosos. Da vaca se aproveita apenas o leite, bebido como elixir. Do boi, gosta-se de seu muque. Assim, a seleção milenar criou animais fortes, acostumados ao trabalho e ao transporte. Deu certo por aqui.

Cruzados com o debilitado rebanho tupiniquim, os descendentes zebuínos mostraram excelente desempenho e adaptação ao clima tropical. Nesse quesito, a raça Nelore se sobressaiu. Originada do sul da Índia, região mais quente, bastou ser aprimorada para corte e deslanchar.

O grande marco na evolução do zebu brasileiro foi fincado entre 1960 e 1962, com a última grande importação de animais. Pecuaristas empreendedores, como Torres Homem da Cunha, Veríssimo Costa, Rubico Carvalho e Celso Cid, formaram uma quadra de ases nesse período. Seu descortino jamais será esquecido.

Alguns animais ficaram mais famosos que gente nessa história do Nelore. O maioral chama-se Karwadi, um tesouro genético descoberto pelo Dico, vaqueiro despachado para a Índia para escolher, no olho, reprodutores campeões. Juntamente com o touro, virou lenda.

Venerados, os valentões indianos reinavam absolutos. Com a chegada da inseminação artificial, então, seu valor subiu às alturas. Pudera! A coleta de esperma permite aproveitar ao máximo o potencial genético do bom reprodutor. Touros consagrados geraram acima de 100 mil doses de sêmen, espalhando bezerros por aí afora. Imperava o machismo no rebanho.

As vacas, porém, viraram o jogo. Com a técnica da transferência de embriões, descoberta na década de 1980, rompeu-se o ciclo reprodutivo natural da fêmea, cuja gestação é idêntica à humana, de nove meses. Provocando nela, quimicamente, uma superovulação, seguida de inseminação artificial, vários óvulos são fecundados simultaneamente. Com poucos dias, são coletados e transferidos para as chamadas "vacas de aluguel", que emprestam a barriga para procriar bezerro alheio.

Nesta última década, com a fertilização in vitro, a técnica foi aprimorada. Multiplicou o rendimento. Cada vaca, selecionada pela excelente genética, passou a gerar 30, 50 até 100 bezerros num único ano. O touro ficou enciumado.

Essa artimanha da tecnologia explica a enorme valorização das matrizes nos leilões de elite da pecuária, conforme se viu nestes dias em Uberaba. Ao contrário do passado, quando somente se valorizava o boi, as fêmeas passaram a se sobressair, valendo fortunas. As melhores ultrapassam R$ 1 milhão.

Muita gente pode pensar que os pecuaristas ganham rios de dinheiro. Não é bem assim. Primeiro, há o diletantismo e a esnobação típica da elite. Empresários poderosos e artistas famosos ganharam dinheiro noutros negócios e agora investem em gado fino. Isso é positivo, mostra um ruralismo atraente, embora crie certa grã-finagem.

Segundo, os leilões de gado com alta genética representam o top da tecnologia, operando na fronteira do conhecimento. Por esse prisma, assemelham-se à Fórmula 1. Os carros de corrida não têm preço. Servem de laboratório para invenções mecânicas que, mais tarde, atingem os automóveis comuns.

Os pecuaristas inovadores não tiraram o pé do chão. Sentem-se, com razão, pilotos do círculo do progresso. Sabem que as vantagens adquiridas na cabeceira descem para a rabeira da atividade, beneficiando novos criadores, atingindo os pequenos. Basta andar pelo Brasil e conferir a performance recente do setor. Gado ruim vai cedendo lugar às raças aprimoradas. Adeus, pé-duro.

Orestinho Prata, talentoso presidente da ABCZ, ensina que o Zebu forma uma família. É verdade. Exibe tradição, tem história. Melhor, alia qualidade à quantidade. Afinal, 80% do rebanho nacional, de 190 milhões de cabeças, se faz com o boi de cupim. Os indianos ficaram para trás.