Título: 'O governo deveria ajudar a Varig'
Autor: Mariana Barbosa
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/06/2006, Economia & Negócios, p. B10

Marcelo Bottini, presidente da Varig

Funcionário de carreira, Bottini diz que no auge da crise, declaração infeliz de Lula causou prejuízos de US$ 50 milhões

O presidente da Varig, Marcelo Bottini, atribui o agravamento da crise da empresa à falta de sensibilidade do governo. Na sua opinião, falta ao governo "enxergar que a Varig é um problema de Estado, da sociedade". Declarações do presidente Lula de que o governo não iria ajudar uma empresa falida detonaram, em abril, uma crise cujo prejuízo, com a queda nas vendas, é calculado em US$ 50 milhões.

"Os fantasmas do passado já foram exorcizados, a Fundação Ruben Berta foi afastada e temos uma gestão profissional, escolhida pelos credores", diz ele, que está confiante de que a solução para a crise da empresa começará com o leilão de venda da companhia, na quinta-feira.

No comando da empresa desde novembro de 2005, Bottini é um típico funcionário de carreira. De seus 45 anos, 26 foram dedicados à Varig. Foi a bordo de um avião da Varig que Marcelo Bottini conheceu sua mulher, a comissária Kassandra. O prefixo daquele avião, VMK, é lembrado como uma daquelas coincidências que só acontecem aos apaixonados e virou a marca de um triângulo amoroso. No momento, sua fidelidade é para com a Varig. Com o agravamento da empresa, faz três meses que ele dorme no sofá-cama em um quartinho anexo à sala da presidência. Têm sido raras as visitas à família, que mora em Miami.

Um de seus méritos à frente da companhia é o de manter o moral da tropa. Esta é uma das principais explicações para o milagre de a Varig continuar voando. Bottini recebeu a reportagem do Estado na última sexta-feira, na sede da Varig, no Rio.

O leilão da Varig havia sido antecipado de 9 de julho para 5 de junho porque a empresa não teria caixa para mais um mês. A empresa agüenta até quinta-feira?

Dois ou três dias não fazem diferença. A imprensa já colocou várias datas, mas estamos aqui até hoje. A Lei de Recuperação é nova e, portanto, dá margem para análises dúbias em relação a certos pontos. Por isso os investidores pediram mais uns dias.

Quantos envelopes (com ofertas) o sr. espera para o dia do leilão?

Não tenho idéia. Espero que as pessoas estejam lá.

O sr. acha que a empresa será vendida pelo preço mínimo?

Só na hora vamos saber. Quem compra quer pagar o mais barato possível.

Os investidores pedem mais garantias de que não haverá sucessão de dívidas trabalhistas e fiscais e de que os slots e hotrans (concessão de vôos e seus horários) serão transferidos para o novo dono.

A não sucessão e a transferência dos slots são premissas básicas e as garantias estão no data-room (sala com informações financeiras sobre os ativos que irão a leilão). Se não houvesse a blindagem contra a sucessão trabalhista e tributária, não existiria recuperação judicial. Quanto aos direitos de vôo, se eu não puder levá-los, vou vender o quê? A Anac já reconheceu isso. A lista com todos os hotrans, assinada pela Anac, está no data-room.

Seria choradeira dos investidores para tentar baixar o preço?

Numa negociação você sempre tenta debilitar o outro lado. Um lado que as pessoas talvez tenham chance de debilitar é a Lei de Recuperação.

O governo ajuda ou atrapalha?

No meu modo de ver, o governo não consegue enxergar que a Varig é um problema de Estado, da sociedade. Falta disposição para querer de fato ajudar. A comunidade internacional deu mais um voto de credibilidade à Varig (com a extensão da liminar que impede o arresto de aviões, pela justiça de Nova York, semana passada), enquanto aqui ninguém dá voto. Dizem que não podem cruzar os limites institucionais.

Mas não já se ajudou demais no passado e nada foi feito? Na hora H, a empresa não demite, sempre tem uma confusão com a Fundação Ruben Berta (FRB)...

Se no passado tivemos pessoas que não administraram bem, não acho justo que se torne inviável uma companhia como a Varig, com tudo o que já fez pelo Brasil, por causa delas. Fala-se em perdoar a dívida da África. A maioria dos países que terão a dívida perdoada teve ditadores no passado. Dizer que não vai perdoar a dívida porque esses países tiveram ditadores é o mesmo que dizer que não vai ajudar a Varig por causa da FRB.

Por que agora seria diferente?

Os fantasmas do passado foram exorcizados e hoje a empresa é dos credores. O controlador (FRB) foi afastado da gestão e está depositando suas ações esta semana, por determinação da Justiça. A pedido dos credores, foi contratada a Alvarez & Marsal, que acompanha a gestão. A dívida privada contraída lá atrás, por administração temerária ou o que for, independentemente de como surgiu, está repactuada. Agora temos o leilão, uma solução de mercado. Desde que entrou em recuperação judicial (17 de junho de 2005), a Varig tem vivido com suas próprias pernas.

Mas a Varig já tem uma dívida de R$ 4,5 bilhões com o governo, como justificar mais dinheiro?

A Varig nunca pediu dinheiro a ninguém. Quando estive com a ministra Dilma (Rousseff, da Casa Civil), apresentei o plano de recuperação aprovado pelos credores, que falava da necessidade de um aporte de US$ 100 milhões no início deste ano, sob pena de tornar inviável o primeiro ano da recuperação. Como não apareceu nenhuma entidade financeira disposta a fazer o aporte, apesar das garantias que existem na Lei de Recuperação, partimos para uma estratégia de alavancar esses recursos entre credores. Tivemos sucesso com fornecedores internacionais. Mas como dentre esses credores potenciais havia dois que eram do governo, a BR Distribuidora e a Infraero, ficamos com a imagem de que estávamos pedindo dinheiro.

O que o governo poderia fazer?

Dada a urgência de prazos para realizar a manutenção dos aviões e colocá-los para voar, solicitei à ministra Dilma que me ajudasse a agilizar e a convencer todas as entidades envolvidas da importância da Varig para o Brasil, pelo que se produz em divisas (US$ 1 bilhão), pelo papel social e pela imagem do País no exterior. Há dois anos, as pessoas aceitavam certas coisas para nos dar crédito e hoje não aceitam mais.

Ouve-se muito que o governo estaria tentando segurar até a Copa ou as eleições, temendo a repercussão negativa da quebra da empresa. O sr. acredita nisso?

O que mantém a empresa são as pessoas. E também alguns fornecedores. Os internacionais têm sido extremamente sensíveis. Nossa relação com a Infraero e a BR é positiva. Não obstante o grande tumulto que seria provocado por uma parada da Varig, não acredito nessa tese. A Copa é apenas o início da alta temporada e os vôos estão todos lotados.

O que mantém a empresa de pé?

A marca. Qualquer outra teria parado com o bombardeio que sofremos em abril, com o noticiário diário dando conta de que a Varig ia morrer "amanhã". E, apesar de termos perdido muitos passageiros, ela não morreu. No momento em que se mostrar que a crise está solucionada, eles voltarão. A capacidade de trazer essa gente de volta é enorme e isso tem grande valor. Sou parado na rua toda hora por pessoas que vêm me dizer que acreditam na empresa. E não é uma por dia. Não tenho paz.

Como a declaração de Lula de que não daria dinheiro para empresa falida afetou a empresa?

Prejudicou muito. Existem formas de dizer as coisas. Eu diria "vamos buscar todos os esforços para que isso não aconteça", por exemplo. Temos de ter cuidado para não prejudicar as empresas. É claro que tem de ter plano de contingência (para o caso de falência), mas dizer isso em público é muito sério, afugenta as pessoas. A repercussão negativa desse tipo de declaração gerou um prejuízo de US$ 50 milhões em abril.

O nível de tensão dos funcionários, por causa dos salários atrasados e incertezas com o futuro, não se torna crítico em uma empresa aérea?

Temos essa tensão sob controle. O material, o avião, se não está apto, você encosta. Isso na Varig é sagrado. O lado psicológico você mede e acompanha. Temos um batalhão de assistentes sociais e psicólogos acompanhando o pessoal, principalmente da área de vôo. Tem muita gente com problemas de saúde, estressada. Mas quem continua na Varig é porque decidiu carregar o peso nas costas. Os salários estão atrasados em quase 60 dias. Muitos foram embora por não ter tido capacidade de suportar, seja economicamente, seja no aspecto emocional. Ao mesmo tempo há a crença de que, durante toda a sua história, não obstante seus erros, a Varig fez muita coisa por muita gente. A Varig é a principal ambulância de toda a região norte. Cansamos de levar gente de graça. Diante de tudo o que foi feito em todos esses anos, não é possível que em troca a gente receba o desaparecimento da Varig.

Como manter a moral dos funcionários?

Lido com a alma das pessoas. Escrevo um comunicado quinzenal, o Diário de Bordo, que não trata de fatos da recuperação, mas da alma. A repercussão é tremenda. Recebo 100 e-mails por dia. Em abril, o número de mensagens saltou para 300. Respondo a todas.

Onde o sr. acha tempo para responder a tanto e-mail?

Eu durmo aqui. Tenho um quartinho simples e fico até a uma hora da manhã no computador. Faz três meses que não piso em casa.