Título: De graça, com o dinheiro dos outros
Autor: Carlos Alberto Sardenberg
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/06/2006, Economia & Negócios, p. B2

Então ficamos assim: aumentar salário do funcionalismo não custa nada. Também o Bolsa-Família sai de graça para o governo.

É o que se deduz das declarações do presidente Lula, na quinta-feira, quando perguntado sobre os gastos do governo com os diversos aumentos concedidos e a serem concedidos ao funcionalismo federal: "É preciso parar com essa mania de achar que quando a gente dá um pouco de salário a gente está gastando."

É isso: se não está gastando, sai de graça.

Mas é claro que é gasto. Tanto é que, no mesmo dia em que o presidente fazia mais aquela frase de campanha, o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, observava: o governo não pode gastar mais que R$ 5 bilhões com os reajustes do funcionalismo, pois esse é o teto previsto no orçamento.

O presidente está em busca dos votos dos funcionários. E, na verdade, está dizendo que aumentar salários é um gasto bom. Procura, assim, jogar seus adversários na vala comum dos inimigos do funcionalismo, para os quais, segundo Lula, salário é dinheiro perdido.

Mas quer o gasto seja bom, quer seja ruim, seja justo ou injusto, seja para o Bolsa-Família ou para uma ambulância superfaturada, custa dinheiro, o mesmo dinheiro do contribuinte. Ou, como diz o ministro Paulo Bernardo, há restrições orçamentárias.

Por isso é preciso fazer escolhas. Por exemplo, o projeto de lei que reajusta os salários do Judiciário vai custar R$ 5 bilhões aos contribuintes. Ora, é correto aumentar a remuneração dos funcionários mais bem pagos do País, com média salarial em torno dos R$ 10 mil por mês, o que os põe no grupo do 1% dos mais ricos da população brasileira, ou seria mais adequado gastar o dinheiro na construção de hospitais e estradas?

Aqui temos uma diferença importante entre, de um lado, gastos de custeio (incluindo pessoal e Previdência) e, de outro, os investimentos, que aumentam a capacidade produtiva do País. Uma das razões do baixo crescimento do País é justamente o nível miserável de investimentos públicos, que caem há décadas, enquanto aumentam os gastos com custeio.

Mas há também outras escolhas a fazer mesmo depois de tomada a decisão de aumentar salários. Não seria mais adequado neste momento gastar os mesmos R$ 5 bilhões para reajustar os vencimentos dos professores, que estão entre os funcionários mais mal pagos?

Ou ainda: faz sentido um juiz ter salário inicial perto de R$ 20 mil, enquanto se paga R$ 8 mil para o presidente da República e pouco mais de R$ 1 mil para médicos iniciantes?

Era isso que estava por trás da pergunta ao presidente. E que ele escamoteou ao dizer que aumentar o salário ou conceder a Bolsa-Família é justo, logo, não pode ser considerado gasto.

Assim como Lula dribla a questão, seu governo ignora o problema. Em vez de se ocupar de uma verdadeira reforma do setor público e da estrutura do funcionalismo, contrata e reajusta salários, não por acaso em ano eleitoral.

Além disso, o comentário do presidente se alinha com um sentimento muito disseminado entre políticos à esquerda e à direita, para os quais sempre há um jeito de arrumar dinheiro público para atender à clientela. Na verdade, há três possibilidades de o governo se financiar: com inflação, que desvaloriza a moeda e as despesas públicas; com aumento de impostos; e com a tomada de empréstimos, isto é, com dívida.

Ao longo dos anos as três modalidades foram largamente utilizadas. A inflação não o é mais. Tornou-se tão elevada e tão danosa que isso criou a necessidade do Plano Real. Alguns anos de estabilidade mostraram à população o benefício de viver sem inflação, de modo que esse expediente não pode mais ser utilizado.

Mas a carga tributária aumentou 10 pontos porcentuais do produto interno bruto (PIB) nesse período de inflação controlada.

Considerando que o PIB brasileiro deste ano deve ser de R$ 2 trilhões, isso significa que os contribuintes brasileiros estão pagando a espantosa cifra de R$ 200 bilhões de impostos a mais, em comparação com os valores reais pagos em 1996. Vista a conta pelo outro lado, o Estado está gastando R$ 200 bilhões a mais, e basicamente em custeio, pessoal e Previdência. Só com pessoal, o governo federal gastará neste ano pelo menos R$ 105 bilhões. Gastando, não, fazendo o bem, como diria o presidente Lula.

A carga tributária brasileira aproxima-se dos 40% do PIB, ante a média de 25% a 30% dos países emergentes concorrentes.

Além de tomar mais impostos das pessoas e de empresas, o governo também tomou empréstimos para financiar seus gastos. Hoje a Dívida Líquida do Setor Público está em torno dos 50% do PIB, quando a proporção prudente mínima seria de 40%. E a ideal, de 30%.

Resumo da ópera: o governo deve demais, arrecada demais, gasta demais e quase tudo em custeio, pessoal e Previdência. Nos gastos com pessoal, há disparidades enormes. Em geral, quem está ali na ponta do serviço, atendendo o público diretamente - como o policial na rua, o professor na sala de aula, o médico no posto de saúde -, é o pessoal com as piores remunerações. Quanto mais se aproxima dos gabinetes, maior o salário.

Além desse problema, há outro. Em geral, também faltam funcionários onde são mais necessários - de novo, nas polícias, nos hospitais, nas escolas - e sobram nos gabinetes.

Em vez de atacar esses problemas, o governo federal simplesmente contrata mais 80 mil funcionários e aumenta salários, mantendo essa estrutura que não atende às necessidades da população.

E daí? Não é gasto, não é mesmo?

Quando se gasta o dinheiro dos contribuintes, parece mesmo que sai tudo de graça.