Título: Aos ungidos de outubro
Autor: Marco Maciel
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/06/2006, Espaço Aberto, p. A2

Consideradas historicamente, as reformas políticas têm-se cingido, no Brasil, a sucessivas reformulações de natureza eleitoral. Criamos, talvez, com isso, a síndrome de tomar por políticas simples mudanças pontuais do sistema partidário-eleitoral. E a melhor evidência é que, conquanto se multiplicando ao longo do tempo, essas reiteradas reformas se restringiram à mudança do sistema majoritário, adotado em 1821, no Império, pelo sistema proporcional, instituído, mais de um século depois, pelo Código Eleitoral de 1932, logo após a Revolução de 30, o que nos leva a indagar em que medida tais alterações ajudaram a aprimorar as nossas instituições político-representativas.

Todo o arcabouço legal nesse terreno, além de normas constitucionais, se restringe a apenas quatro ordenamentos distintos: o Código Eleitoral de 1965, a Lei Complementar de Inelegibilidades de 1990, a Lei dos Partidos e a Lei Eleitoral, ambas de 1995 - destas duas últimas, aliás, tive o ensejo de participar das discussões como vice-presidente da República. Com exceção do Código Eleitoral, as demais leis foram sancionadas na década de 90 do século passado. As resoluções do Tribunal Superior Eleitoral, no entanto, somam mais de 20 mil.

Examinando volume coligido, em 1874, por Antonio Pereira Pinto, intitulado Reforma Eleitoral, somos levados a constatar - e a lamentar - que a mais efetiva das mudanças ocorridas em 65 anos de duração da monarquia se cingiu à Lei Saraiva, de 1881. Ao transformar em diretas as eleições de dois graus, adotadas em 1822, o que pareceu um avanço terminou se transformando num retrocesso, na medida em que aumentaram as exigências para comprovação da renda dos eleitores, reduzindo-se, como decorrência, o colégio eleitoral. Uma vez que não há alternativas aos sistemas eleitorais senão as modalidades majoritária ou proporcional, e que esta última, além de se encontrar consagrada em todas as Constituições democráticas do País desde 1934, é adotada na maior parte do mundo, por ensejar menores inconvenientes que o sistema majoritário, embora aqui seja por listas abertas, talvez seja hora de refletir conjuntamente a propósito dos passos a serem dados tão logo esteja encerrado o pleito deste ano.

É importante ter presente que as reformas de que necessitamos para vencer o agudo déficit de governabilidade se alojam no campo político-institucional e ultrapassam - e muito - o território eleitoral-partidário. Mais do que meus argumentos, parecem-me úteis as lições de Norberto Bobbio, contidas no seu livro Entre Duas Repúblicas, no qual o mestre analisou, ao fim da 2ª Grande Guerra, a conjuntura que vivia seu país, quando se discutiam o futuro da Itália e os rumos de sua Constituição de 1946, que, lá como aqui, tinha o objetivo de devolver à nação a democracia, tão cruelmente banida - lá pelo fascismo, aqui pelo Estado Novo. A transcrição de trechos iniciais do livro, sob o título Homens e Instituições, justifica-se por si mesma e por sua enorme atualidade.

"Há ainda quem diga que a política é questão dos homens. Tais pessoas formavam, durante o fascismo, o alinhamento dos iludidos, porque admitiam que tudo teria dado certo se, no lugar desses homens, corruptos e prepotentes, houvesse outros homens, honestos e íntegros. Essas pessoas são, hoje, as mesmas que vão aumentar a fila dos desiludidos, porque descobrem que nem todos os governantes são Péricles e nem todos os membros dos Comitês da Libertação Nacional são Catão. Esse conceito, melhor dizendo, esse pré-conceito, se baseia na divisão abstrata e moralista dos homens, de todos os homens, em bons e maus e na falsa e ingênua opinião de que a política seja a simples arte de colocar os bons no lugar dos maus."

Infere-se, portanto, que a questão se desloca do âmbito das pessoas - isto é, com suas virtudes e seus defeitos - para corretamente se situar na construção de autênticas instituições. Observa, mais adiante, Bobbio: "Para quem insiste em dizer que é questão de homens, responderemos, com absoluta segurança, que é de instituições. Os homens, em sua maioria, são aquilo que são; as boas instituições revelam as qualidades positivas, as más, as negativas. Uma instituição em que os homens se corrompem e antepõem o próprio interesse ao interesse público, não resta dúvida, é uma má instituição." Em apertada síntese, outra não é a conclusão: melhorar a qualidade da política, fazê-la sinônimo de bem comum, significa renovar as nossas instituições, torná-las capazes de dar respostas às demandas da sociedade e, assim, estabelecer uma democracia real, sem a qual não se asseguram a liberdade, a justiça e o desenvolvimento orgânico do País. Não basta, destarte, considerarmos as instituições apenas sob o ponto de vista político e jurídico, mas, igualmente, levarmos em conta o seu aspecto social.

Dispensável lembrar ser o Estado, em suas distintas formas e diversas formalidades, a mais antiga instituição do planeta. Não porque seja a mais importante construção humana, mas pelos atributos que a ele vêm associados: o poder, a dominação e, como corolário, o monopólio da coerção. É certo que limites foram estabelecidos ao longo de sua evolução - o primeiro deles, a separação dos Poderes -, insuficientes, todavia, para conter abusos pelo exercício muitas vezes imoderado da autoridade. Assim, não há outra tarefa a cumprir em nosso país senão a de edificarmos autênticas instituições: não só um adequado sistema eleitoral-partidário, mas igualmente aprimorar o sistema de governo, estabelecer uma verdadeira Federação e restaurar os valores republicanos enquanto res publica, preconizada por Cícero há 20 séculos.

Eis, portanto, a primeira tarefa a ser cumprida pelos ungidos em outubro, sem a qual a idéia democrática não habitará a consciência coletiva nacional. Esse é o nosso desafio. Se não agora, quando?