Título: EUA têm de dialogar com iranianos
Autor: Joschka Fischer
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/05/2006, Internacional, p. A14

A crise do Irã avança com rapidez numa direção alarmante. Já não pode haver nenhuma dúvida razoável de que a ambição do Irã é obter a capacidade de produzir armas nucleares. No âmago da questão, contudo, está a aspiração do regime iraniano de se tornar uma potência islâmica e regional hegemônica e, assim, colocar-se à altura das nações mais poderosas do mundo. É precisamente esta ambição que diferencia o Irã da Coréia do Norte. Enquanto esta busca a capacidade de armas nucleares para reforçar o próprio isolamento, aquele procura o domínio regional e outras coisas.

O Irã aposta em mudanças revolucionárias na estrutura de poder no Oriente Médio para atingir seu objetivo estratégico. Para tanto, o país usa Israel e o conflito israelense-palestino, mas também o Líbano, a Síria, sua influência na região do Golfo Pérsico e, acima de tudo, o Iraque. Esta combinação de aspirações hegemônicas, questionamento do status quo regional e programa nuclear é extremamente perigosa.

A aquisição de uma bomba nuclear pelo Irã - ou mesmo sua capacidade de produzir uma - seria interpretada por Israel como uma ameaça fundamental a sua existência, levando portanto o Ocidente, e a Europa em particular, a tomar posição. A Europa não tem apenas obrigações morais históricas para com Israel, mas também interesses de segurança que a ligam ao leste do Mediterrâneo, estrategicamente vital. Além disso, um Irã nuclear também seria percebido como ameaça pelos outros vizinhos, o que provavelmente motivaria uma corrida armamentista regional e aumentaria ainda mais a volatilidade regional. Em resumo, o Irã nuclear poria em questão a segurança fundamental da Europa.

Acreditar que a Europa poderia se manter fora deste conflito é uma perigosa ilusão.

Nesta crise, as apostas são altas, e é por isso que a Alemanha, a Grã-Bretanha e a França começaram a negociar com o Irã há dois anos, com o objetivo de convencer o país a abandonar seus esforços para completar o ciclo do combustível nuclear. Esta iniciativa fracassou por dois motivos. Primeiro, a oferta européia de abrir a tecnologia e o comércio, incluindo o uso pacífico da tecnologia nuclear, foi desproporcional ao medo fundamental da mudança de regime no Irã, de um lado, e a suas aspirações hegemônicas regionais e sua busca por prestígio global, de outro.

Em segundo lugar, a desastrosa guerra liderada pelos EUA no Iraque levou os dirigentes do Irã a concluir que a principal potência ocidental ficou enfraquecida a ponto de depender da boa vontade de Teerã e que os altos preços do petróleo fizeram o Ocidente temer ainda mais um confronto sério.

A análise do regime iraniano poderá se mostrar um erro de cálculo perigoso, pois deverá levar rapidamente a um confronto "quente" que o Irã simplesmente não será capaz de vencer. Afinal, a questão no centro deste conflito é: quem domina o Oriente Médio - o Irã ou os Estados Unidos? Os líderes do Irã subestimam a natureza explosiva dessa questão, e da resposta a ela, para os EUA como potência global - e, portanto, para seu próprio futuro.

Mas o debate sobre a opção militar - a destruição do programa nuclear do Irã por meio de ataques aéreos dos EUA - tampouco leva à solução do problema. Na verdade, ele soa como uma profecia que se cumpre de tanto ser anunciada. Não há garantia de que tentativas de destruir o potencial nuclear do Irã tenham sucesso. Além do mais, com uma agressão externa, as ambições nucleares do Irã seriam totalmente legitimadas.

Finalmente, um ataque militar ao Irã também marcaria o começo de uma escalada militar e terrorista regional e, possivelmente, global - um pesadelo para todos os envolvidos.

Então, o que deveria ser feito? Haverá uma chance séria para uma solução diplomática se os EUA, em cooperação com os europeus e, portanto, com o apoio garantido do Conselho de Segurança da ONU e dos países não-alinhados do Grupo dos 77, oferecerem ao Irã uma "Grande Permuta". Em troca da suspensão a longo prazo do enriquecimento de urânio, o Irã e outros países ganhariam acesso à pesquisa e à tecnologia em moldes definidos internacionalmente e sob a supervisão abrangente da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). O passo seguinte seria a total normalização das relações políticas e econômicas, incluindo garantias de segurança sob um acordo para a segurança regional.

O alto preço da recusa desta proposta deve ficar absolutamente claro para os líderes do Irã: se não houver acordo, o Ocidente fará o que estiver a seu alcance para isolar o país nos campos econômico, financeiro, tecnológico e diplomático, com o apoio integral da comunidade internacional. As alternativas do Irã devem ser o reconhecimento e a segurança ou o total isolamento.

Oferecer essas alternativas ao Irã pressupõe que o Ocidente não teme a alta dos preços do petróleo e do gás. De fato, as outras duas opções - o surgimento do Irã como uma potência nuclear ou o uso da força militar para evitar isso - iriam, além de todas as terríveis conseqüências, aumentar os preços do petróleo e do gás. Tudo pesa a favor da estratégia econômico-financeira e tecnológica.

O conhecimento das conseqüências potencialmente terríveis de um confronto militar ou de um Irã de posse da bomba atômica precisa forçar os EUA a abandonar sua política de recusar negociações diretas e sua esperança de mudança de regime. Não é suficiente os europeus agirem enquanto os americanos continuam a observar as iniciativas diplomáticas, participando da discussão apenas nos bastidores e, no fim das contas, deixando que os europeus façam o que quiserem. O governo Bush precisa liderar a iniciativa ocidental em negociações harmoniosas e diretas com o Irã. E, se essas negociações tiverem sucesso, os EUA também deverão estar dispostos a aceitar garantias apropriadas. Neste confronto, a credibilidade e a legitimidade internacionais serão os fatores decisivos. Para garanti-las, será necessária a liderança americana esclarecida, fria e calculada.

A oferta de uma "Grande Permuta" uniria a comunidade internacional e apresentaria ao Irã uma alternativa convincente. Se o Irã aceitasse essa oferta, a suspensão de sua pesquisa nuclear em Natanz ainda durante as negociações seria o teste de sua sinceridade. Se o Irã recusasse a oferta ou não honrasse seus compromissos, se isolaria totalmente e forneceria uma enfática legitimação de outras medidas. Nem a Rússia nem a China poderiam negar solidariedade dentro do Conselho de Segurança.

Mas tal iniciativa só terá sucesso se o governo americano assumir a liderança entre as nações ocidentais e sentar-se à mesa de negociação com o Irã. Mesmo assim, a comunidade internacional não terá muito tempo para agir. Como todas as partes devem saber, o tempo para uma solução diplomática está acabando.