Título: O Brasil, hoje, e as formas de governo
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/05/2006, Espaço Aberto, p. A2

A necessidade de classificar as sociedades segundo seu tipo de governo é tão antiga quanto o pensamento político do homem, buscando diferenciar as formas boas e más de governo. Foi com Aristóteles que surgiu a divisão tripartite das formas de governo de então: monarquia, aristocracia e democracia. Classificação puramente mecanicista, não levou em conta as formas degeneradas do uso de poder: tirania e oligarquia. Montesquieu atribuía a cada tipo tradicional um princípio moral: virtude à democracia, moderação à aristocracia e honra à monarquia. Contrapôs ao despotismo a separação dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, que encontrou sua classificação clássica na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão votada em agosto de 1789, em plena Revolução Francesa : "Em toda sociedade na qual a garantia dos direitos não está assegurada e a separação dos Poderes não esteja determinada, não existe Constituição."

Faço este preâmbulo pela necessidade de, considerando minha inépcia jurídica, tentar identificar em que regime vivemos, já que a divisão de Poderes é essencial para tentar qualificar a nossa forma de governo. Montesquieu defendia a separação dizendo que, se fosse um só o Poder, seria ditadura, se fossem dois, como dirimir a pendência potencial entre eles? Daí a necessidade da separação deles. Quando o presidente Lula foi eleito, o PT, aproveitando a popularidade do seu chefe, aumentara sua bancada para 91 membros, a maior na Câmara dos Deputados. Claro que não poderia governar seguindo apenas seus princípios, difíceis, aliás, de definir, já que o PT é uma soma de alas de pensamento diverso em assuntos fundamentais de ideologia. Abandonando a pureza de que se jactava, compôs uma base parlamentar capaz de emendar a Constituição, inclusive, e especialmente, as reformas a que fora contrário quando oposição. É evidente que, quando um partido isoladamente elege o presidente, não precisa de alianças. No caso petista, revogou a aversão que tinha a alianças com partidos burgueses, todos "farinha do mesmo saco".

Na quarta tentativa, Lula passou a dizer que "aliança se faz pelo bem do partido e se desfaz quando desnecessário". Vitorioso, a base de apoio na Câmara se avolumou, esquecidos do programa de seus partidos os aderentes, alguns como o Liberal de Álvaro Valle, que defendia os princípios ideológicos do liberalismo. Quando Roberto Jefferson, seguramente não por imperativo moral, lancetou o tumor que dominava as alianças, surgiu a série de escândalos que enojaram a sociedade. Cada depoimento abalava a consciência popular. A mentira, deslavada, o cinismo, a constatação de que nunca na era republicana, pelo menos, houvera tamanha soma de fraudes num governo, sob a indiscutível proteção do governante, evidenciou-se que entre o Executivo e o Parlamento não havia divisão de Poderes. O primeiro açambarcava o segundo, e da pior maneira possível: a direção do PT dirigia a fraude, insultava os eleitores que haviam transferido a sua soberania para os representantes no Parlamento, que sordidamente iam ou mandavam gente de sua confiança receber dinheiro para manter o compromisso de votar com o governo.

A esperança última estava no terceiro Poder: o Judiciário. O Ministério Público e os procuradores-gerais da República cumpriam seus deveres, brava, mas inutilmente. Cláudio Fonteles, diante de parte da reforma da Previdência que violava a Constituição (o que o mais despreparado juridicamente podia constatar), pronunciou-se contrário em fundamentado parecer, repudiando a violência a uma cláusula pétrea da Constituição, os direitos assegurados, quando o Executivo exigiu nova contribuição de aposentados para cobrir em parte os rombos da Previdência Social, paliativo cruel que para nada serviu, pois o déficit aumentou enormemente. O parecer do procurador-geral não foi levado em consideração pela maioria da Corte Suprema, que apoiou a exigência do Executivo. O presidente, em apenas dois anos, nomeara quatro ministros do STF. O senador Jefferson Peres, em nítida represália, tenta obter a mudança dessa prerrogativa presidencial.

A CPI dos Correios - em que a lama da articulação do tesoureiro do PT se misturou à falta de caráter de muitos parlamentares traidores de seus eleitores - se tornou indesmentível. Instaurada à revelia do presidente, nomeados presidente e relator, ambos da base governamental, surpreendeu o governo mantendo a imparcialidade, começou a chamar para depor indigitados responsáveis pelo mensalão. Correram eles ao Supremo e, por decisão monocrática de um ministro ou outro recém-nomeado, obtinham habeas-corpus, indo à CPI garantidos para nada responder. Um caseiro, convocado por outra CPI, começava a revelar conduta comprometedora. Prontamente um senador petista correu célere ao Supremo e, por outra decisão monocrática imediata, foi ordenado calar a voz do caseiro. Em represália a Polícia Federal do ministro da Justiça amedronta o caseiro e o investiga por um crime suposto de lavagem de dinheiro, um pobre homem que recebera do pai um pequeno auxílio financeiro. Procurador-geral da República, o bravo dr. Antônio Fernando de Souza se destaca dessa deplorável submissão ao Poder Executivo e denuncia 40 por envolvimento em "organização criminosa". O eminente ministro Joaquim Barbosa, do STF, logo declarou que só no próximo ano poderia dar andamento ao processo. Alegou não poder notificar José Dirceu, dito chefe da máfia pelo procurador-geral, porque lhe desconhecia o endereço... Dirceu foi acintosamente ao Supremo, deu o endereço e não foi notificado.

Lula de nada sabe. Os franceses, sob a velha monarquia - comenta Tocqueville -, "diziam que o rei não pode errar. A culpa é de seus assessores".

Que regime temos: o dos assessores?