Título: O sonho acabou?
Autor: Gilberto de Mello Kujawski
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/05/2006, Espaço Aberto, p. A2

O embaixador Rubens Ricupero, em entrevista à Folha de S.Paulo (13/5), dá um banho de pessimismo nos leitores ao asseverar, com toda a sua reconhecida autoridade intelectual, que acabou o sonho da integração sul-americana. Esclarece que durante sua carreira diplomática esteve sempre entre os defensores dessa integração. Segundo o diplomata, o pressuposto de todos os projetos comuns está na idéia de que somos sul-americanos, vizinhos que temos de nos tratar na base da confiança. Para ele, "a confiança deixou de existir no momento em que Morales tratou o Brasil com hostilidade e Chávez mandou funcionários da estatal PDVSA para fazer devassas nas contas da Petrobrás na Bolívia."

Temo que o conceituado intelectual tenha levado a sério demais as fanfarronadas da dupla Chávez-Morales. Os fanfarrões não fazem a História. Podem assustar, falar, ameaçar com raios e trovões, dar a impressão de que tomam medidas drásticas, mas nada é para valer. Dão o dito por não dito, o feito por não feito, e, assim que contabilizam os lucros de sua comédia de terror, recuam das ameaças e as coisas permanecem mais ou menos do mesmo tamanho. O carro da História é muito pesado para ser movido à força de bravatas e decisões levianas. Por isso não nos devemos fiar nos caprichos dos demagogos, que chantageiam o povo com sua concepção mágica e pré-lógica da política, fazendo crer que podem mudar a sociedade e a economia de uma hora para outra, num passe de ilusionismo. As propostas de Hugo Chávez, como a Alba, um tratado comercial alternativo à Alca, não têm a menor consistência e nenhuma possibilidade de prosperar.

Na História não há lugar para caprichos, decisões isoladas ou soluções alternativas ao arrepio das correntes de força predominantes, que não se constituem de "idéias", nem de "ideais" ou de opiniões vagas e discricionárias; correntes de força que se impõem na História de forma imperiosa e irresistível, análogas em tudo à prepotência das forças da natureza. É preciso obedecer à gravidade, à energia do vento e das águas para dominá-las. Da mesma forma, se quisermos aperfeiçoar as instituições políticas e econômicas vigentes, temos, primeiro, de aceitá-las como são para, num segundo momento, reformá-las segundo suas virtualidades. Está escrito que o destino da América Latina (AL) depende de três ou quatro países hegemônicos: Brasil, Argentina, México e, agora, o Chile. Pensar que a Venezuela ou a Bolívia vão desequilibrar o jogo entre essas quatro peças principais do tabuleiro político latino-americano não passa de puro devaneio ou alucinação, fantasmagorias. Neste xadrez, cedo ou tarde o poder de decisão volta para as peças-chave, o rei, a dama, a torre e o bispo, não obstante a rebeldia dos peões e dos cavalos.

Quem coloca a questão nos devidos termos é Jorge Castañeda, em entrevista a Paulo Sotero publicada neste jornal (caderno Aliás), com grande repercussão. O escritor e ex-chanceler mexicano considera que Chávez e Morales nunca foram de esquerda. Ao contrário, com sua histrionices desmoralizam e envergonham a esquerda reformista e moderna do Chile, parte da esquerda brasileira e parte da esquerda uruguaia. Aqueles líderes andinos são de esquerda só na retórica. Repetem os populistas do passado. Só sabem distribuir dinheiro público. O mesmo ocorre com Néstor Kirchner, que reduz o pagamento da dívida para distribuir o dinheiro em programas assistenciais. "Chávez depende do preço do petróleo", isto é, suas força e influência estão ligadas à alta do petróleo. Quanto a Morales, não passa de um expoente das massas camponesas tradicionais travestido de caudilho. "Morales não vem da esquerda. (...) Não, Morales é um dirigente cocalero cuja força deriva em parte dos indígenas, em parte de uma base popular entre os excluídos nas cidades." Para os que não levam nosso país a sério, o intelectual mexicano reservou algumas palavras que foram recebidas com certo espanto entre brasileiros pessimistas e derrotistas: "O Brasil é um país demasiado grande, demasiado sério, com demasiados interesses e demasiadas responsabilidades para praticar o antiimperialismo. A verdade é que este é um jogo que apenas os pequenos podem se permitir." Sim, o Brasil é uma demasia, um país que se atordoa com o que tem de excessivo em todos os sentidos.

Resumo da ópera:

O esquerdismo de Chávez & Morales não passa de pura mistificação retórica. Como mistificação, não tem consistência nem se sustenta por muito tempo. Na verdade, os bufões andinos continuam, à sua maneira, o velho populismo caudilhesco da AL, distribuindo dinheiro ao povo indiscriminadamente até o dia em que terão de pagar a conta. Nesse dia vão desmoronar.

A proposta de integração da AL é um sonho que não acabou. Porque não se trata de um desejo eventual ou de um ideal abstrato, e sim de uma imposição histórica.

Explico-me: nenhum país da AL sairá sozinho da crise histórica que os aflige secularmente; para encontrar seu caminho é imperioso dar as mãos aos vizinhos. O Chile, que se comporta tão bem até aqui, já se convenceu de que tem de se aproximar dos seus irmãos e participar da Alca. Porque nenhum dos países latino-americanos apresenta suficiência para superar isoladamente suas limitações. Este problema da insuficiência, da falta de viabilidade histórica das partes isoladas e dispersas de uma sociedade política, é crucial. Foi para saná-lo que, no final da Idade Média, reinos, ducados e condados, pré-existentes na Europa, se integraram de modo a constituir as grandes nações modernas. A Espanha, a França, a Inglaterra são o produto da integração daqueles reinos, ducados e condados que, isolados, não se poderiam manter de pé. Analogamente, Brasil, Argentina, México, Chile, Colômbia, Venezuela, Bolívia, etc., terão pouca viabilidade sem se conjugarem à totalidade da AL, funcionando em reciprocidade e de modo sinérgico.

Gilberto de Mello Kujawski, escritor e jornalista, é membro do Instituto Brasileiro de Filosofia