Título: 'Sempre pensávamos em suicídio'
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Fonte: O Estado de São Paulo, 12/06/2006, Internacional, p. A10

Ex-prisioneiros de Guantánamo relatam situação na base dos EUA

Paisley Dodds, ASSOCIATED PRESS, LONDRES

Deprimidos e desesperados, prisioneiros da base americana em Guantánamo tentam se matar para escapar de uma situação que consideram sem saída, e não porque buscam o martírio, disseram três ex-detentos britânicos. "Não existe esperança em Guantánamo. As únicas coisas que passavam por nossas cabeças, dia após dia, eram como obter justiça ou como se matar", disse no sábado Shafiq Rasul, ex-prisioneiro de 29 anos que fez greve de fome na prisão para protestar contra supostos espancamentos. "É o desespero - e não a idéia do martírio - que consome os prisioneiros lá." Em entrevista à Associated Press, Rasul e dois amigos de infância - Ruhal Ahmed e Asif Iqbal - descreveram como foram mantidos na prisão americana por mais de dois anos sem ser acusados formalmente. Muitos dos cerca de 460 detidos por ligações com o regime do Taleban no Afeganistão ou com a rede terrorista Al-Qaeda estão presos há mais de quatro anos sem acusação formal.

Os três homens são assunto de um filme, The Road to Guantanamo (A estrada para Guantánamo), que segue seus passos desde uma visita ao Paquistão, para o casamento de um deles, até a desolada base militar americana na ilha de Cuba. O filme, que estreou no Festival de Berlim em fevereiro, entra em cartaz nos EUA neste mês.

No sábado, dois sauditas e um iemenita presos em Guantánamo desde a abertura da prisão, em 2002, se enforcaram usando seus lençóis e roupas. As mortes podem marcar um momento decisivo para o campo, cenário de abusos contra prisioneiros, interrogatórios implacáveis, uma série de greves de fome e tentativas de suicídio e um dilema legal que levou grupos pró-direitos humanos e líderes como o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, a pedir seu fechamento.

Não há cenas de tentativa de suicídio no filme, mas os ex-detentos dizem ter assistido a várias. "Um saudita na cela diante da nossa decidiu dar um basta", contou Ahmed. "Pudemos ouvi-lo rasgando o lençol e amarrando-o ao teto de arame da cela. Ele pulou da pia e tentou se enforcar. Gritamos para os militares e eles vieram e o salvaram."

Os ex-detentos dizem que foram espancados na prisão; viram soldados jogando exemplares do Alcorão no vaso sanitário; tiveram de assistir a vídeos de prisioneiros supostamente obrigados a se sodomizar; e foram acorrentados a um gancho no chão sob luzes estroboscópicas e ao som de heavy metal. As alegações, algumas encenadas no filme, são parte de uma ação judicial contra os EUA que pede indenização de US$ 10 milhões para cada ex-prisioneiro.

Os três homens, libertados sem acusações em março de 2004, dizem que suas vidas ainda são difíceis. Contam que, desde que começaram a promover o filme na Europa, são questionados ou revistados quando entram na Grã-Bretanha. Recentemente, quando voltaram da Espanha, policiais armados entraram no avião em Birmingham e revistaram seus assentos. Até atores que os representaram no filme foram detidos para interrogatório em fevereiro sob as leis antiterror. "É constrangedor. É como se fôssemos estrangeiros em nosso próprio país", disse Ahmed.

Os três cresceram na cidade de maioria branca de Tipton, perto de Birmingham. Eles contam que se sentiam alienados por não ser brancos. Hoje, sentem-se isolados por causa de sua religião. "É estranho, pois quando fomos embora nem éramos tão religiosos", disse Rasul.

O filme começa quando os três deixam a casa dos pais no centro da Inglaterra e viajam para o Paquistão, onde Iqbal vai se casar. O clima muda com notícias da intensificação dos ataques aéreos no vizinho Afeganistão. Um pregador de uma mesquita conclama as pessoas a ajudar os afegãos com alimentos e remédios - apelo que os três homens dizer ter se sentido obrigados a atender.

O trio foi capturado em novembro de 2001 e detido na prisão de Shebargan, no norte do Afeganistão. Um mês depois, foram entregues às Forças Especiais dos EUA e acabaram levados para Guantánamo. O governo americano afirmou que eles participaram de um comício no Afeganistão no qual Osama bin Laden discursou para a multidão. Eles negam. Libertados, tornaram-se alvo de ameaças de morte e mudaram-se de Tipton. "A tortura alimenta o terror", diz Iqbal, que voltou ao Paquistão em 2005 para se casar.

"Esperamos que o filme cause impacto nos EUA", disse Rasul. "São os americanos que podem resolver este problema e são eles que mais precisam assistir ao filme."