Título: A carne-seca não é tanta
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Fonte: O Estado de São Paulo, 12/06/2006, Nota e Informações, p. A3

O Brasil é dono da carne-seca e não precisa temer os abalos no mercado financeiro internacional, disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, celebrando mais uma vez a solidez da economia brasileira, uma condição sem precedente, segundo ele, propiciada ao povo por seu governo. Ele deve ter-se esquecido de transmitir a boa nova aos técnicos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). As primeiras sete páginas de seu novo boletim conjuntural, divulgado na quarta-feira, são dedicadas principalmente a um balanço das oportunidades perdidas na fase de bonança internacional e dos desafios não enfrentados, principalmente na área fiscal.

Essa introdução contrasta fortemente com o relativo otimismo exibido nos capítulos seguintes, dedicados à avaliação das perspectivas para 2006. As projeções de crescimento econômico são melhores que as divulgadas no primeiro trimestre, mas o estoque de boas previsões logo se esgota.

O Brasil está menos vulnerável do que noutros momentos de instabilidade externa, reconhecem os economistas do Ipea, mas nem por isso eles deixam de mostrar preocupação diante da piora do cenário internacional.

O esforço interno pode ter sido relevante, mas o quadro externo, argumentam, muito contribuiu para a melhora da situação do País. O comércio mundial expandiu-se rapidamente e os preços de muitos produtos brasileiros subiram. Além disso, houve financiamento farto e barato, num ambiente de baixa aversão ao risco.

Mas o Brasil cresceu menos do que podia nessa fase de bonança. Além disso, desperdiçou a oportunidade para resolver o mais grave problema de sua economia - o desequilíbrio das contas públicas. O governo terá de cumprir em condições menos favoráveis todas as tarefas não realizadas até agora. Será esse o primeiro e mais importante desafio para quem administrar o País a partir de 2007.

A política de crescimento já será mais complicada, se os prenúncios de piora do cenário externo se confirmarem. Com o risco país na faixa de 275 a 300 pontos, a margem de manobra para políticas expansionistas será bem menor do que até recentemente, quando aquele indicador estava próximo de 200.

Será menor o espaço para redução dos juros internos - para mencionar apenas uma das conseqüências da mudança. A ata da última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), divulgada um dia depois do boletim do Ipea, realçou esse ponto.

Mas o governo não se limitou a postergar a solução do desajuste fiscal. Esse desequilíbrio tem aumentado e vem-se convertendo, segundo os autores do boletim, no "maior obstáculo" a uma expansão mais vigorosa da produção brasileira nos próximos anos.

De janeiro a abril, os gastos primários do governo central, isto é, suas despesas não financeiras, foram 7,5% maiores, descontada a inflação, que no período correspondente de 2005. Excluídas as transferências a Estados e municípios, aquela diferença chega a 8,7%.

Se essa tendência for mantida ao longo do ano e se o superávit primário (resultado sem os juros) for o programado oficialmente, o gasto primário do governo central, excluídas as transferências a Estados e municípios, chegará a 18,8% do Produto Interno Bruto (PIB).

Se aquelas despesas primárias tivessem continuado no padrão de 2003, corresponderiam, neste ano, a 16,7% do PIB. Nesse caso, o setor público teria um déficit total, incluídos os gastos com juros, inferior a 1% do PIB. Mantida a tendência atual, dificilmente ficará abaixo de 2,5%. A piora do quadro fiscal vem de longe. Confirmadas as projeções, a despesa primária do governo central, incluídas as transferências a Estados e municípios, terá subido de menos de 14% para 23,2% do PIB. Os gastos previdenciários terão passado de 3,4% para 8,7% do PIB.

O País, portanto, continua a perder "uma oportunidade excepcional, propiciada por condições particularmente favoráveis ao crescimento", de resolver o problema fiscal. Ao longo desse período, a carga de impostos aumentou e a qualidade do gasto público deteriorou-se.

A advertência dos economistas do Ipea é muito clara: a agenda é pesada e urgente e o risco de ter de cumpri-la num ambiente menos favorável que o dos últimos anos é muito grande. Não é hora de superestimar o estoque de carne-seca.