Título: Autoritarismo ou democracia?
Autor: Denis Lerrer Rosenfield
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/06/2006, Espaço Aberto, p. A2

Vivemos um divisor de águas. Não estamos diante de uma escolha eleitoral qualquer, entre dois fortes candidatos que disputam a Presidência da República segundo a rotatividade de poder própria da democracia. Para além desse exercício regular e salutar de teste diante das urnas, presenciamos o embate entre duas concepções de Estado e de sociedade: uma, de extrema leniência com a corrupção e com a falta de ética, de aparelhamento partidário do poder de Estado, de ausência de autocrítica diante de posições que defendia e de posições que pragmaticamente veio a executar; a outra, procurando redesenhar as relações entre a sociedade e o Estado, ciente de que o progresso passa pela renovação das idéias e por novas perspectivas centradas na liberdade de escolha. Lula vê o Brasil para trás; Alckmin, para a frente.

Um episódio bastante esclarecedor reside na reação de ambos diante da depredação da Câmara de Deputados por um grupo mais radical dos sem-terra, o MLST, que persegue os mesmos objetivos de sua organização-mãe, o MST, a saber: a implantação no Brasil do socialismo segundo os moldes cubanos ou de "transição para o socialismo" à la Chávez. Se discordam da tática a ser adotada, isso não significa que ambas as organizações não se caracterizem pela mesma luta contra a propriedade privada, a economia de mercado e a democracia representativa. Basta a leitura de documentos dessas organizações, basta escutar as declarações dos seus dirigentes, para que se tenha uma noção clara do que perseguem, despontando, principalmente, esse pouco apreço pelas instituições republicanas e o seu propósito de que o Brasil percorra o caminho do socialismo autoritário. Pode-se compartilhar ou não essas posições, o que não se pode, no entanto, é desconsiderá-las como se não fossem explícitas, pois isso exige somente um mero exercício de leitura, típico daqueles que aprendemos na escola. Os que dizem que essas organizações não perseguem esses objetivos ou agem de má-fé, ou expõem sua própria ignorância. Ou as duas coisas juntas.

A depredação da Câmara dos Deputados, com requintes de violência, foi conduzida por um membro da Executiva do PT, instância máxima do partido. Não se trata de um militante qualquer, mas de alguém encarregado da Secretaria dos Movimentos Sociais. Logo, não se pode dizer que o partido não teve nada que ver com isso ou que aquele petista agiu em caráter pessoal. O argumento é pueril, próprio de dirigentes que negam a existência do mensalão e são coniventes com a corrupção. É a popularização da conduta de Lula: não vi, não sei. Só falta dizer: logo, não existe. Mais grave, todavia, é o fato de que essa invasão é a culminação de tantas outras ações que contaram, até aqui, com a simpatia, se não com o apoio explícito, do PT e do governo federal, por meio do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do Incra. A lista é longa: invasões de terras, produtivas ou não, ocupação de Assembléias Legislativas, depredação de pedágios, ocupação de ruas e estradas, destruição de centros de pesquisa e de prédios públicos, campanha sistemática contra o agronegócio e, agora, a violência contra a Câmara dos Deputados, símbolo por excelência da democracia. Não se podem confundir deputados corruptos com o Poder Legislativo. Se o fizermos, abriremos grandes portas para pseudo-soluções autoritárias.

O presidente da República já tinha posto o boné dessa organização política e de sua congênere, o MST. Seus dirigentes foram recebidos no Palácio do Planalto com todas as honrarias. A aprovação dos símbolos é reveladora da afinidade entre o governo e esses movimentos ditos sociais. Os seus líderes recebem, pour cause, a denominação de companheiros. Companheiros de idéias, companheiros de posições, companheiros de jornadas e - por que não? - companheiros de invasões e de desrespeito às instituições democráticas. Enquanto eram apenas os proprietários rurais as vítimas, o governo e o PT aplaudiam. Agora que o próprio Congresso se torna objeto da violência, eles não sabem mais o que fazer com as mãos. Talvez procurem tirar o boné! Para colocá-lo onde?

Aliás, os próprios deputados poderiam aprender também a lição e não mais receber organizações políticas que visam à destruição mesma da democracia, que agem contra o Estado de Direito. Os dirigentes do MST e de organizações afins se acostumaram com os tapetes do poder, transitando livremente no Palácio do Planalto e no Congresso, antes, durante e depois de suas ações de invasão de propriedades. Sempre agiram à margem da lei e foram muito bem recebidos por aqueles que deveriam ser os seus guardiães. Compactuar com isso significa compactuar com a violência, diga-se ela ou não servidora de uma "causa". Se a "causa" prima sobre as liberdades, estas, em pouco tempo, desaparecerão do horizonte. A escolha se impõe entre uma sociedade democrática e uma que se baseia na sua abolição, por mais charmoso que seja o seu nome.

Alckmin, por sua vez, soube marcar adequadamente que um Estado sem autoridade se torna um Estado refém de grupos, movimentos e corporações que têm como traço comum o uso da violência e o desprezo ao Estado de Direito. A autoridade estatal se exerce em defesa das instituições, em defesa das leis e, mais genericamente, em defesa dos cidadãos, que têm, assim, asseguradas as suas condições mesmas de uma existência livre. Ser democrata significa defender a democracia, significa assumir a autoridade própria de um Estado que não se deixa arrastar para a anarquia. Ser democrata significa defender as instituições republicanas, não tendo nenhuma leniência com ações que atentem contra o Estado de Direito. Ser democrata significa defender as liberdades, significa ter tolerância zero contra qualquer ação que se faça ao arrepio da lei.