Título: Missão vai a Roma tentar reabilitação de Padre Cícero
Autor: Marcelo de Moraes, Paula Pereira
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/05/2006, Vida&, p. A39

Religioso cearense consta como desobediente nos arquivos da Santa Sé

Uma missão brasileira chega a Roma na próxima semana para tentar mudar as impressões do Vaticano a respeito de uma das mais populares figuras brasileiras, a do padre Cícero Romão Batista, o Padre Cícero. Nos anais da Congregação para a Doutrina da Fé, o religioso cearense morto em 1934, mas venerado há mais de um século sobretudo no Nordeste, consta como desobediente, suspeito de se aproveitar da boa-fé do povo e envolvido demais com política.

Duas comitivas de cerca de 30 pessoas, entre elas o governador do Ceará, Lúcio Alcântara (PSDB), o arcebispo de Fortaleza, d. José Antônio Aparecido Tosi, e o bispo de Crato, d. Fernando Panico, apresentarão à Igreja cartas inéditas do padre e outros documentos sobre seu caráter que podem ajudar a reabilitá-lo e, dessa forma, abrir caminho para o processo de sua beatificação.

"O que se pretende é que a Santa Sé tenha conhecimento desses documentos inéditos e possa ter uma outra visão", diz padre Roserlândio de Souza, coordenador do Departamento Histórico da Diocese de Crato, vizinha de Juazeiro do Norte, onde atuou Padre Cícero.

Para reforçar os argumentos, a comitiva leva também um abaixo-assinado com 150 mil nomes e um documento assinado por cerca de 200 bispos brasileiros pedindo a revisão histórica e eclesial do caso. "Ele já foi canonizado popularmente", diz Daniel Walker, estudioso de Padre Cícero que ajudou a reunir os documentos.

O grupo se encontrará com Bento XVI na quarta-feira, durante a audiência semanal do papa. Depois levará à congregação o dossiê pedido por Roma em 2001 e elaborado por representantes da diocese de Crato, da Arquidiocese de Fortaleza e da Universidade Regional do Cariri (URCA). Caso obtenha sucesso na cruzada, o grupo encerrará um processo aberto há mais de cem anos para investigar a conduta do padre.

MILAGRE

Nascido em Crato em 1844, Padre Cícero foi designado pároco do povoado vizinho, Juazeiro. Durante a grande seca de 1889, convocou os fiéis a rezar pela chuva. Na hora da comunhão, a hóstia que estendeu a uma das beatas teria se transformado em sangue. O fenômeno, que teria se repetido outras vezes, foi visto como embuste pelo bispo local e um processo foi aberto. Padre Cícero acabou excomungado e reabilitado, mas ficou suspenso de suas funções de padre.

Ele nunca se retratou e ainda recorreu à Cúria Romana. Além disso, continuou a receber os fiéis em casa para aconselhamento e pregações. "Quem bebeu não beba mais; quem matou não mate mais; quem preguiçou não preguice; quem pecou não peque." Aos poucos, espalhou-se a notícia de que curava doentes.

Mas a epopéia do padre não se limitou ao mundo da religião. Ele foi prefeito de Juazeiro duas vezes e vice-presidente do Ceará, sendo sempre muito procurado por políticos da época por conta de sua influência entre o povo.

CRUZADA

Os integrantes da comitiva brasileira estão otimistas. Afinal, foi o próprio papa, então cardeal e presidente da congregação, quem solicitou o estudo sobre o polêmico cura. "O papa atual conhece bem o processo porque foi ele quem pediu", diz o estudioso Walker.

A devoção a Padre Cícero cresceu nas últimas décadas e hoje arrasta uma multidão de 2,5 milhões de romeiros por ano a Juazeiro. A cidade sobrevive do turismo religioso em torno do padre. A começar do santuário dedicado a Nossa Senhora das Dores, que tem uma imagem trazida da França por Padre Cícero.

À caminho da Colina do Horto, fica uma estátua de concreto de 27 metros de altura, erguida onde ele gostava de fazer meditações. A Casa dos Milagres, onde são depositados ex-votos, e a Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, onde Padre Cícero está sepultado, são outros pontos de visitação.