Título: A doutrina Bush da tirania
Autor: Danielle Pletka, Michael Rubin
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/05/2006, Internacional, p. A30

Na semana passada, a secretária americana de Estado Condoleezza Rice anunciou a retomada de relações diplomáticas plenas dos Estados Unidos com a Líbia, citando a renúncia do governo de Trípoli ao terrorismo e a cooperação em inteligência. Isto encerra um congelamento diplomático de um quarto de século. Assinala também o fim definitivo da doutrina Bush.

Em seu segundo discurso de posse, o presidente americano, George W. Bush, declarava: "A sobrevivência da liberdade depende do sucesso da liberdade em outras terras. A melhor esperança para a paz em nosso mundo é a expansão da liberdade em todo o mundo."

Desde aquele pronunciamento grandiloqüente, a administração Bush observou o Egito anular eleições, ignorou o colapso da chamada Revolução do Cedro no Líbano, e abandonou dissidentes chineses presos; agora o governo de Washington está costurando um tratado de paz com o regime stalinista da Coréia do Norte.

O fato é que a retórica da diplomacia é mais fácil do que a sua aplicação. Washington teme que o Egito se furte à luta contra a rede Al-Qaeda se os Estados Unidos pressionarem por reformas. Teme que a China bloqueie investimentos se o presidente Bush pressionar pela libertação de prisioneiros políticos.

Esses temores serão realistas? Não. Esses países ainda têm interesses paralelos aos nossos. Mas isso não ficará claro a menos que o presidente obrigue os tiranos a fazer uma opção entre a reforma e o isolamento.

O caso de Fathi el-Jahmi, o mais importante ativista pró-democracia da Líbia, é um dos mais flagrantes. Quando Jahmi foi solto da prisão por um breve período em 2004, Bush louvou a sua libertação como um indício de mudança no ditador líbio Muamar Kadafi. Mas a liberdade de Jahmi durou meras duas semanas e seu nome não tornou a sair dos lábios do presidente.

O anúncio de Condoleezza ao receber a Líbia de volta à comunidade das nações civilizadas não mencionou nem democracia nem Jahmi.

No Egito, onde no ano passado Condoleezza tornou-se heroína para os reformistas que pediam eleições limpas, o governo acelerou a repressão, prendendo Ayman Nour, o principal líder da oposição, com acusações espúrias.

Onde o governo Bush ameaçava retirar a ajuda e ganhou a libertação de um importante defensor da democracia, ele agora silenciou. No início de maio, a polícia egípcia cercou centenas de pessoas que se manifestavam em apoio a dois juízes que acusavam de fraudulentas as eleições parlamentares. Mas Washington não pretende reduzir a ajuda anual de U$ 1,8 bilhão ao Egito. Em vez disso, hospedou neste mês o filho (e sucessor ungido) do presidente Hosni Mubarak .

As pressões por mudanças também diminuíram na Síria e no Líbano. Em março de 2005, na esteira do assassinato do ex-primeiro-ministro Rafik Hariri, o povo libanês se ergueu para pedir democracia e reformas. O governo Bush comemorou, mas logo perdeu o interesse. Uma visita de Condoleezza a Beirute, em julho, repleta de reuniões "obrigatórias" com o presidente fantoche instalado pela Síria, semeou dúvidas sobre o compromisso americano com a independência libanesa. As asneiras de Washington asseguraram que um fantoche sírio provavelmente governará o Líbano por mais um ano.

A mesma devoção maior à forma que à substância se tornou visível em nossa política com a China. Antes de sua visita a esse país em 2005, Bush pediu a libertação de vários presos políticos, incluindo a do colaborador do New York Times, Zhao Yan. O governo chinês ignorou o pedido.

O mesmo pedido polido foi feita a Pequim antes de o presidente Hu Jintao visitar Washington em abril. Desta vez, Zhao foi solto, só para ser novamente acusado após o fim da turnê mundial de Hu. Sinais de desagrado de Washington? Nenhum.

Será que o governo está questionando a sabedoria de promover a democracia como uma solução de longo prazo para os problemas de segurança nacional americanos?

Os "realistas" sugerem que o presidente finalmente "caiu na real". Eles dizem que a democracia nos deu um governo islâmico no Iraque e o Hamas na Palestina. E poderia nos dar a Irmandade Muçulmana no Egito. Só Deus sabe o que surgiria na China ou na Líbia. Melhor o diabo que se conhece.

Mas não há sinais de que a Casa Branca tenha feito uma reavaliação estratégica. O presidente continua acreditando na sua própria pregação, mas seu governo se tornou incapaz de tomar as decisões difíceis que essas crenças exigem. Ele tem se mostrado ágil em abraçar as vantagens políticas vistosas, embora transitórias, que resultem de receber Kadafi na comunidade das nações e o presidente da China numa excursão à fábrica da Boeing.

Os muitos dissidentes e reformadores estrangeiros que confiaram na palavra de Bush são os primeiros a pagar o preço pela falta de determinação de Washington. Disseram a eles que se assumissem os riscos pela liberdade, os Estados Unidos ficariam do seu lado. Abandoná-los tornará mais difícil encontrar aliados democráticos. Os indivíduos corajosos são os verdadeiros elementos para a construção de transições para a democracia. Sem eles, como aprendemos no Iraque, há poucas alternativas à tirania que nos ameaça.