Título: Poderes embaralhados
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/06/2006, Notas e Informações, p. A3

A fórmula da separação dos Poderes de Estado - Executivo, Legislativo e Judiciário - , sua atuação independente e harmônica, assim como o sistema de contrapesos que propicia um tipo de fiscalização recíproca entre eles, submetendo-os ao controle maior da sociedade, não deriva apenas de sábias elucubrações iluministas daqueles que, como Montesquieu, refletiram sobre os fundamentos do regime democrático, mas é fruto de uma experiência histórica de mais de dois séculos - a experiência de Democracia que têm tido alguns povos do mundo, no Ocidente. Em países como o nosso, em que a aspiração democrática, seguidas vezes, foi abafada pelo surto autoritário das ditaduras, ainda não houve, a rigor, a oportunidade de uma experimentação longa, continuada, da independência e harmonia entre os Poderes, razão por que as atribuições destes, freqüentemente, se mostram embaralhadas, suas funções não exibem contornos claramente definíveis, por mais que se tente marcá-los no ordenamento constitucional ou legal.

O recente episódio em que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) surpreendeu a sociedade brasileira com um completo recuo, proveniente de confessado equívoco interpretativo, transformou-se num interessante estimulo à reflexão sobre a quantas anda, no Brasil, aquilo que é visto como estrutura fundamental das Democracias contemporâneas, ou seja: a fixação de atribuições específicas de cada um dos Poderes de Estado e a não usurpação de funções, de um Poder em relação aos demais. O reconhecimento do próprio erro - do tribunal e especialmente de seu presidente, ministro Marco Aurélio Mello - ao radicalizar sponte sua a regra da verticalização das coligações partidárias, com isso assumindo funções legislativas que não lhe cabem, representou, antes de tudo, um grande alerta: estarão os Poderes de Estado, no Brasil, com o açambarcamento recíproco de atribuições, minando os fundamentos institucionais de nossa ainda jovem Democracia?

Alguns podem achar que essa confusão funcional se estabeleceu no País desde que entramos na fase de redemocratização - já que, ao tempo da ditadura militar, prevalecia um chamado Poder Central que absorvia, em essência, as funções dos demais Poderes. É claro, no entanto, que a indefinição de funções entre os Poderes é tão antiga, no Brasil, quanto a confusão da estrutura político-partidária, que sempre esteve na raiz de nossas crises institucionais, como gostava de lembrar Afonso Arinos de Mello Franco. Talvez não seja coincidência, aliás, o fato de o tema vir à baila quando a Justiça Eleitoral tenta definir (ou interpretar, "legislando") a questão das coligações entre os partidos políticos, em época eleitoral.

A relação entre os dois temas - partidos políticos e atribuições dos Poderes - também se dá em razão de nosso vigente regime presidencialista, em que os governos conseguem ou não agir, implementar seus programas, atuar com maior ou menor eficiência administrativa, na proporção dos apoios que conseguem obter nas Casas Legislativas, vale dizer, no sistema de alianças político-partidárias que conseguem montar, em benefício da própria governabilidade. Claro está, por outro lado, que a invasão de atribuição entre os Poderes também decorre do fato de um Poder tentar exercer a função da qual o outro não se desincumbe com eficácia - e aqui o exemplo típico é o das Medidas Provisórias (descendentes diretas dos Decretos-Leis da ditadura), pelas quais o Executivo usurpa, de forma inexorável (e descarada) as funções do Poder Legislativo.

Quando o Legislativo se concentra excessivamente em funções de fiscalização, investigação e cobrança punitiva - como ocorreu na atual legislatura, com a proliferação de CPIs, seus intermináveis interrogatórios e processamentos de documentação - está, na verdade, assumindo funções executivas, sem contar com o instrumental adequado para exercê-las, visto que não pode agir como se seus membros integrantes fossem de órgãos policiais ou do Ministério Público. E, se o Judiciário, muitas vezes, se arvora em dar uma interpretação que extrapola os limites da norma legal, é porque a própria lei foi elaborada de forma obscura, confusa, dando margem a toda a sorte de ambigüidades e equívocos. Não há como deixar de relacionar, então, a independência e harmonia entre os Poderes a seu próprio grau de eficiência funcional, no que se impõe a simples conclusão: democracia é o regime em que os Poderes funcionam bem.