Título: Variações sobre a política externa
Autor: Celso Lafer
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/06/2006, Espaço Aberto, p. A2

Miguel Reale intitulou muitos dos seus artigos neste espaço de "variações", pois a palavra indica, numa analogia com a música, uma unidade temática no diálogo com os assuntos. Recorro à sua lição para retomar considerações sobre a política externa do governo Lula.

A política externa é uma política pública como a monetária, pois trata da gestão de interesses coletivos. Traduzir necessidades internas em possibilidades externas é o seu objetivo. Isto requer precisar quais são, numa determinada conjuntura, as necessidades internas, avaliando ao mesmo tempo o contexto das possibilidades externas.

Na avaliação das possibilidades externas cabe fazer um exame da dinâmica do sistema internacional nos seus três grandes e interdependentes campos: estratégico-militar (paz/riscos de guerra), econômico (comércio, investimentos, finanças) e valores (divergências e convergências políticas e culturais).

No trato desta matéria é importante lembrar que o processo de globalização internaliza na vida dos países as realidades e tensões do mundo. Declarações iranianas sobre a navegação de petroleiros no Estreito de Ormuz afetam o preço do petróleo no planeta. Manifestações das autoridades monetárias dos EUA causam impacto nas bolsas e nos juros em outros países.

Um mundo globalizado, permeado por tensões, contém relevantes elementos de imprevisibilidade. Não é inteiramente racional nem totalmente absurdo. Daí a dimensão da gestão de riscos inerente à condução da política externa. Evidentemente esta gestão parte das especificidades da inserção de um país na vida internacional. As incoerências e fragilidades da heterogênea ordem mundial afetam de forma diferenciada, por exemplo, países que estão situados no Oriente Médio ou na América do Sul. Daí a importância diplomática da relação região-mundo. É por conta desses fatos que o mundo pune os países que não identificam, com sentido de prioridade, o que precisam obter no plano internacional e não avaliam corretamente o que podem obter em função da sua efetiva relevância no contexto internacional. Daí o imperativo de evitar, na gestão da política externa, dois riscos opostos: o de superestimar-se e o de subestimar-se.

O superestimar-se deságua na inconseqüência e por vezes na insensatez. O subestimar-se leva à inércia e ao conformismo. Os EUA superestimaram a sua capacidade de atuação no Iraque. Daí o impasse em que estão mergulhados. No início da 2ª Guerra Mundial, a França - em contraste com a Inglaterra - subestimou o seu potencial de resposta à invasão alemã e se acomodou à ocupação nazista.

É neste contexto geral que se coloca minha recorrente crítica à diplomacia do governo Lula que, a meu ver, não avaliou corretamente as possibilidades externas nem definiu apropriadamente as necessidades internas.

A definição interna básica não foi uma preocupação com o abrangente interesse coletivo. Foi dar uma compensação ideológica ao PT e a setores políticos que sempre apoiaram Lula na sua trajetória política. Daí o empenho da diplomacia lulista em caracterizar-se como o inovador e altivo marco zero da inserção internacional do Brasil.

O desdobramento internacional desta postura se assinalou por um voluntarismo que levou o governo Lula a superestimar a sua capacidade de atuar no mundo e a não estabelecer prioridades. Daí o desperdício de recursos diplomáticos e a inconseqüência de tantas iniciativas. A política externa lulista não conseguiu um assento permanente no Conselho de Segurança, não elegeu o diretor-geral da OMC nem o presidente do BID; não mudou a geografia econômico-comercial do mundo; não contribuiu para a redução da fome no planeta; não transformou as parcerias com a China e a Índia num instrumento de alteração da ordem mundial. A politização ideológica imprimida a parte significativa das negociações comerciais não proporcionou maiores ganhos políticos nem resultados econômicos apreciáveis; o aproveitamento do ativo diplomático da biografia do presidente no plano internacional como uma encarnação das aspirações de mudança está sendo reduzido pelo desgaste do seu valor simbólico e a pretensão de uma protagônica liderança na América do Sul está sendo minada pelos fatos.

As dificuldades e impropriedades no manejo desta liderança no âmbito do prioritário contexto da nossa vizinhança são visíveis. Ao contrário do que afirma o senador Aloizio Mercadante no seu apologético livro em defesa do governo Lula, a diplomacia lulista não está recuperando e consolidando o Mercosul nem efetivamente integrando econômica, política e fisicamente a América do Sul. O Mercosul político perde credibilidade em razão de dissensões internas e o econômico faz água por conta do predomínio das exceções sobre as regras. O espaço sul-americano, por sua vez, se vê permeado por conflitos, e não pelo ímpeto da cooperação.

Nestes dois tabuleiros diplomáticos, as aspirações bolivarianas do presidente Hugo Chávez (que o Brasil aceitou como membro do Mercosul) põem em questão a posição brasileira. O presidente Chávez instiga o conflito como forma de afirmar-se, valendo-se do poder do dinheiro do petróleo e da atração, nas ruas latino-americanas, do seu populismo antiamericano, que o estão convertendo num ícone do movimento antiglobalização e num prócer da sublevação dos particularismos. Para este desafio, que representa o risco do nosso isolamento na região - preocupação recorrente da diplomacia brasileira, que sempre buscou a cooperação, e não o conflito -, não vejo até agora resposta apropriada. Vejo acomodação, fruto da subestimação do que o Brasil representa para seus dez vizinhos.

Em síntese, um eventual segundo mandato de Lula representará, num mundo que tende a ser política e economicamente mais inóspito, o aprofundamento dos equívocos da sua política externa. Prejudicará a qualidade da inserção internacional do Brasil e dificultará a tradução de necessidades internas em possibilidades externas.

Celso Lafer, professor-titular da Faculdade de Direito da USP, foi ministro das Relações Exteriores no governo FHC