Título: Separação entre governo, PT e sem-terra é cada vez mais frágil
Autor: Roldão Arruda
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/06/2006, Nacional, p. A10

Do ponto de vista formal, o governo, o Partido dos Trabalhadores (PT) e os movimentos de sem-terra deveriam ser três diferentes interlocutores no encrencado debate sobre a reforma agrária brasileira. A prática, no entanto, não tem sido essa. Desde que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tomou posse, os limites entre os três interlocutores vão se tornando cada vez mais tênues.

O caso do líder do Movimento de Libertação dos Sem-Terra (MLST), Bruno Maranhão, que, no rastro do recente quebra-quebra no Congresso, também apareceu como integrante da Executiva Nacional do PT e pessoa de bom trânsito nas dependências do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), não é isolado. Faz parte de uma série de fatos que vão da influência do Movimento dos Sem-Terra (MST) na indicação de dirigentes do Incra ao apoio logístico que o governo dá aos acampamentos.

Não por acaso, uma das primeiras vozes que se levantaram em defesa do líder do MLST por ocasião do quebra-quebra foi a da funcionária Maria Oliveira, superintendente do Incra de Pernambuco, em cuja sede Maranhão era visto com freqüência. Ela atribuiu a responsabilidade pelo incidente ao Congresso, chamando-o de incompetente por não saber lidar com os sem-terra.

Desde quando atuava como ouvidora agrária, em Brasília, Maria de Oliveira sempre esteve próxima das organizações de sem-terra, especialmente o MST. Sua ida para Pernambuco foi provocada por esse movimento, que refugou o nome anteriormente indicado pelo governo e exigiu a mudança.

Pernambuco não é o único Estado onde a direção do Incra mantém vínculos com o MST. Das 27 superintendências do País, pelo menos 14 são dirigidas por simpatizantes ou ex-militantes do movimento. Os superintendentes de São Paulo e de Mato Grosso do Sul, para citar alguns, foram militantes da organização.

A lista é coroada pelo próprio presidente do Incra, Rolf Hackbart, que chegou ao cargo após a demissão de Marcelo Resende, cuja indicação também não agradou ao MST, porque ele era ligado à Comissão Pastoral da Terra (CPT). Antes do Incra, Hackbart produzia estudos para a bancada agrarista do PT no Congresso e, indiretamente, para o MST. Na opinião do sociólogo Zander Navarro, estudioso da questão e que também já assessorou os sem-terra, Hackbart "é um quadro partidário que nasceu para a política pelas mãos de João Pedro Stédile e é dele dependente".

A permanência de Hackbart na direção do Incra, diz Navarro, é uma das demonstrações de que parte do governo Lula não tem percepção das diferenças entre Estado e partido: "Se tivéssemos uma administração federal que fosse realmente 'a favor do Brasil' e não apenas do PT, esta separação surgiria claramente nas decisões tomadas e nas escolhas realizadas. Como é possível nomear tantos coordenadores do Incra subordinados ao MST?"

VERBAS

O MST insiste que mantém a autonomia, que não foi cooptado nem virou correia de transmissão de atos do governo. Mas os fatos não mostram uma separação tão nítida:

1) nunca o MST e entidades congêneres receberam tantas verbas públicas como neste governo. No governo de Fernando Henrique Cardoso os recursos foram reduzidos, com receio de que fossem usados para manter a militância e fomentar invasões;

2) apesar de criticarem radicalmente a política econômica de Lula - a quem acusam de seguir a cartilha neoliberal de FHC - e mesmo sem perspectivas de mudança, o MST, a CPT e o MLST defendem a reeleição do petista;

3) em São Paulo, na lista de pré-candidatos do PT a deputado estadual aparece o nome de Diolinda Alves de Souza, liderança sem-terra das mais conhecidas no País, o que sinaliza novos vínculos. Até agora o MST descarregava votos no PT, mas não deslocava quadros para a disputa eleitoral;

4) a reforma agrária avança em ritmo mais lento do que o MST esperava, mas seus líderes mantêm o fôlego na arregimentação de pessoas para os acampamentos. Isso se deve em parte ao apoio logístico do governo, que inclui cestas básicas para os acampados. De acordo com a CPT, nunca tantas famílias foram mobilizadas para invasões como em 2004, segundo ano do governo Lula.

Na opinião do deputado federal Raul Jungmann (PPS-PE), ex-ministro do Desenvolvimento Agrário, hoje existem três possibilidades para os movimentos: "Os que foram cooptados, os que foram comprados e os que acham que Lula é o mal menor. É diferente do que vimos em governos anteriores, quando existia a alteridade, a polarização. Hoje existem setores da sociedade civil que agem como cúmplices dos desmandos do governo."

Para alguns especialistas, dificilmente o MST conseguiria sobreviver sem o suporte governamental. O cientista político Leôncio Martins Rodrigues acredita que a linha divisória entre governo, movimentos sociais e PT ainda se mantém porque é preciso contentar diversos segmentos do eleitorado, incluindo os chamados conservadores. "Na contabilidade dos votos, muita ideologia ou identificação exacerbada com um setor social acarreta perda de eleitores", diz.

Mas o estudioso também acredita que os vínculos entre governo e movimentos sociais são cada vez mais estreitos: "O MST et alii não sobreviveriam sem a torneira governamental. Manter essa torneira aberta é a verdadeira finalidade das ações contra o 'latifúndio e o Estado burguês'. Trata-se de uma variedade de Bolsa-Família. No que resultará esse assistencialismo estatal sui-generis é difícil de prever. Mas é fácil imaginar que só contribuirá efetivamente para melhorar a renda de suas lideranças."