Título: Guerra à corrupção intriga russos
Autor: Steven Lee Myers
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/06/2006, Internacional, p. A15

Os agentes secretos abordaram o senador da república russa de Kalmykia e dois assessores quando eles saíam do escritório de uma empresa aérea em Moscou, no dia 2, com uma maleta preta que conteria US$ 300 mil em notas marcadas. As autoridades acusaram o senador, Levon Chakhmakhchyan, de extorquir a companhia aérea para limpar certas descobertas de auditoria inconvenientes. Os US$ 300 mil eram o adiantamento de uma propina de US$ 1,5 milhão, segundo os agentes. O senador alegou inocência e insistiu que tinha imunidade parlamentar.

Dias depois, porém, as autoridades o destituíram de sua cadeira na Câmara Alta do Parlamento, o Conselho da Federação, deixando-o à mercê da Justiça. Foi uma jogada astuta, como se tivesse sido feita para a TV. E poderia ter sido, já que a Rússia se aperfeiçoou no julgamento- espetáculo para os que perdem o favor político. Mas este caso, quando combinado com vários outros nas últimas semanas, suscita uma questão que poderá afetar profundamente o rumo do país nos próximos anos : a Rússia estará, enfim, levando a sério o combate à corrupção? O presidente Vladimir Putin gostaria que a Rússia e o mundo, a poucas semanas da reunião do Grupo dos 8 (os sete países industrializados e a Rússia) em São Petersburgo, em julho, pensassem assim.

Um Judiciário complacente, perseguições seletivas, a erosão da disputa política e o abafamento de vozes de oposição - para não mencionar uma explicação oficial obscura sobre os alegados crimes do senador -, tudo se enquadra num cinismo público tão profundo que mesmo as prisões mais divulgadas são menosprezadas como justiça de fachada.

"A sociedade está desiludida com a justiça", escreveu recentemente o semanário Argumenti i Fakti. "Uma pessoa que rouba uma galinha pode ir para a cadeia, claro, mas uma pessoa que rouba milhões é bem-vinda para se tornar um membro do Conselho da Federação ou da Duma (a Câmara Baixa do Parlamento russo)!" A corrupção está tão entranhada na sociedade russa - do pagamento de propinas a policiais e juízes à trama de quase todo tipo de negócios com uma burocracia maior que a dos tempos soviéticos - que um punhado de casos novos inevitavelmente suscita suspeitas de perseguição seletiva.

O mais espantoso na reação às acusações contra Chakhmakhchyan não foi o choque de que o senador poderia estar carregando uma maleta cheia de dólares (é uma crença disseminada que os cargos no Parlamento e no governo estejam disponíveis por um preço, supostamente de milhões). Foi a torrente de especulações sobre quem ele havia provocado, ou traído, para acabar assim encrencado.

Até onde vai o cinismo dos russos? Uma teoria é que Chakhmakhchyan foi destituído (assim como outros quatro senadores em maio) para que suas cadeiras sejam revendidas. "Eles só falam de corrupção", disse Vladimir Ryjkov, um dos poucos críticos independentes do Kremlin na Duma. "Eles não a combatem. Combatem só adversários políticos."

Os motivos de Putin continuam, como sempre, insondáveis. Mas pelo menos ele tem falado mais sobre corrupção. Investiu contra ela num pronunciamento nacional em maio, chamando suas manifestações de "os mais sérios obstáculos para nosso desenvolvimento".

Chegou ao ponto de citar um comentário de Franklin Roosevelt de 1934: "Na elaboração de um grande programa nacional que busque o bem primordial da maioria, é verdade que os pés de algumas pessoas estão sendo pisados e vão ser pisados", recitou Putin. "Mas esses pés pertencem a comparativamente poucos que tentam reter ou ganhar posição ou riquezas, ou ambos, por algum atalho que é danoso ao bem maior."

Roosevelt estava se referindo às práticas empresariais injustas e à irresponsabilidade social das empresas, e não exatamente à corrupção. "Acredito que a responsabilidade social deve ser a base do trabalho dos funcionários públicos e do meio empresarial", acrescentou Putin.

A manchete de Argumenti i Fakti brincava com a alusão: "Nos calos de quem o sr. Putin pisou?" O que é uma excelente pergunta, e, até agora, impossível de responder. Dois dias depois do discurso, Putin demitiu o chefe do notoriamente corrupto serviço aduaneiro e uma dúzia de funcionários de nível médio acusados de contrabandear carros, vinho e até iates para a Rússia, enquanto sonegavam bilhões de dólares de encargos sobre bens importados. O Serviço de Segurança Federal, sucessor doméstico da KGB, anunciou a abertura de processos contra vários funcionários.

Em 26 de maio, as autoridades prenderam Alexei Barinov, governador do Distrito Autônomo de Nenets, região ártica rica em energia, sob acusações que remontavam a 2000 e já tinham sido investigadas e derrubadas. Foi o primeiro governador no exercício do cargo preso na Rússia desde o colapso da União Soviética. Em junho, Putin demitiu o procurador-chefe da Rússia, Vladimir V. Ustinov, o qual havia jurado que outros casos de corrupção estavam sob investigação. Assessores de Putin indicaram que viriam novas demissões. Parece um expurgo anticorrupção - que o jornal Noviye Izvestiya comparou com os expurgos dos anos 1930. Não se trata do Grande Terror, porém.

Os casos de corrupção podem enviar uma mensagem a funcionários suscetíveis a propinas, e defensores de Putin dizem que ele e seu círculo entendem que a corrupção põe em risco o desenvolvimento do país como potência respeitada.

Mas Kirill V. Kabanov, diretor da entidade Comitê Nacional Anticorrupção, está cético. Ele elogiou a demissão de Ustinov, mas disse que a verdadeira mensagem de guerra à corrupção seria um processo contra alguém próximo de Putin. "Na Rússia sempre acontece de encontrarem alguma pessoa no nível inferior e médio, mas ninguém do topo", disse ele.