Título: México busca um chefe de Estado
Autor: Enrique Krauze
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/06/2006, Internacional, p. A17

Para avaliar o papel que o presidente mexicano, Vicente Fox, tem tido na áspera, renhida e preocupante campanha para as eleições do dia 2, basta compará-lo a seu predecessor. Ainda à frente de um partido hegemônico no poder, Ernesto Zedillo decidiu não participar na escolha do candidato. Ao "cortar o próprio dedo", desarticulou o eixo central da lógica de seu partido.

Já Fox, na mais monárquica tradição do Partido Revolucionário Institucional (PRI), quis influir na primária do Partido Ação Nacional (PAN) a favor de seu candidato, então secretário de Governo. Essa atitude tirou-lhe a autoridade moral e foi contraproducente. Com outras circunstâncias, contribuiu para a derrota de Santiago Creel. O vencedor da disputa interna foi Felipe Calderón, "filho desobediente" que Fox desdenhara na Câmara e no gabinete.

Há seis anos, em plena campanha, a atitude de Zedillo foi de exemplar discrição. Apesar disso, Fox se dedicou a insultar e desqualificar o presidente, colocando-lhe vários apelidos que agora não quer lembrar e ameaçando impugnar a eleição se a diferença ficasse abaixo de 10 pontos porcentuais. Em seis anos, Fox não aprendeu a lição da urbanidade política. Hoje o vemos aparecer assiduamente na mídia como se o relógio não marcasse 2006 e sim 2000: um candidato em campanha empenhado em desqualificar adversários.

O PRI e o Partido Revolucionário Democrático fizeram reuniões com um único ponto na agenda: unir-se para disputar uma "eleição de Estado". O termo é exagerado e impreciso. Para sê-lo, o governo teria de controlar a máquina eleitoral, e esta, por sorte, ganhou autonomia real. Mesmo assim, restam duas possíveis irregularidades: a utilização de programas públicos para coagir o voto dos mais necessitados e o uso dos meios de comunicação para transmitir mensagens contra seus opositores. A primeira acusação é duvidosa: não há provas confiáveis de que a coação esteja ocorrendo. Mas a segunda falta é evidente e lamentável: Fox abusou de sua presença na mídia. Embora a propaganda sobre as realizações dos seus seis anos de governo possa ser feita no momento apropriado, há muitos meses que ele devia ter desaparecido do ar por um ato de prudente autocontenção e proteção da democracia.

Após a vitória de 1994, obtida com ampla margem e boa participação, Zedillo admitiu que as eleições, embora limpas, não tinham sido eqüitativas. O defeito tinha sido na cobertura refletida na mídia: os dados estavam carregados a seu favor. Por isso, em 2000, a cobertura dos candidatos foi mais parelha e sua exposição pública, mais equilibrada. Hoje, os números do Instituto Federal Eleitoral e o mais elementar sentido de objetividade mostram que a mídia deu amplo espaço a todos os candidatos. Mas a eqüidade se desvirtua pela intervenção do presidente. Seria possível objetar que em democracias maduras, como a americana, o presidente tem papel ativo na promoção de seu partido. É verdade, mas como esquecer a fragilidade e inexperiência de nossa ordem democrática? E como evitar que seja rodeada por um clima de desconfiança? Para o presidente não deveria haver papel além daquele que assumiu Zedillo (a um custo terrível para ele dentro do PRI): o de árbitro neutro.

Compreende-se, em abstrato, que um mandatário tente cuidar de "seu legado", de preservar a continuidade de suas políticas públicas. Mas a política não vive "em abstrato": todo ato político se inscreve numa sucessão histórica que lhe dá peso e sentido. A esse respeito, nossa história é clara. As tentativas de perpetuação foram inúteis e dispendiosas. O que prevaleceu (ainda nos tempos do PRI) foi certa oscilação de estilos, programas e ideologias, e esta oscilação costuma ocorrer de modo mais profundo e natural em ordens democráticas. Afinal, a democracia é um sistema de tentativa e erro: embora às vezes retrocedam, as sociedades vão aprendendo (ainda que nem sempre) com os descalabros. É justamente este o poder do voto: vota-se a partir da experiência, o voto serve de castigo para um governo deficiente, de prêmio para um eficaz, e de oportunidade para uma opção desconhecida, mas viável. Por esse caminho, as democracias avançam. Dirão que a ascensão de Hitler pela via do voto é um argumento contrário, mas aquele episódio atroz que custou dezenas de milhões de vidas não foi um erro da democracia e sim dos eleitores insensatos ante um líder carismático que lhes propunha um império cósmico.

O ideal de toda democracia é chegar a ser, digamos, "monótona", um processo não isento de tensões, mas no qual as instituições se sobreponham às paixões. Não é este, porém, o nosso caso: abundam as desqualificações em meio a um clima crescente de inquietação social. Não resta dúvida de que Andrés Manuel López Obrador atiçou a fogueira desde 2003 com seu discurso quase revolucionário em termos de polarização e agressividade, mas se tratava, em todo caso, de uma estratégia política (provocadora, irresponsável talvez, mas política) e o certo é que Fox não soube como reagir politicamente a ela. Agora, com suas aparições públicas, ele pretende recuperar o tempo perdido. Tudo que consegue é rarefazer o ambiente.

Como primeiro presidente da alternância, ele deveria compreender que seu verdadeiro legado estaria no fortalecimento de nossa democracia. Para conseguir este ideal, nós, mexicanos, precisamos afiançar as instâncias de arbitragem: o Judiciário em primeiro lugar, mas também o Instituto Federal Eleitoral (que ainda goza de boa saúde e reconhecimento público) e a própria Presidência da República, entendida em tempos eleitorais como uma instituição com autoridade política e moral acima dos partidos. Já é tarde, estamos em cima da hora, mas se Fox se assumir como chefe de Estado, será mais fácil exigirmos o mesmo do próximo presidente dentro de seis anos.