Título: Tensões crescentes na América do Sul
Autor: Sergio Amaral
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/05/2006, Espaço Aberto, p. A2

Em declaração recente, o vice-presidente do Uruguai afirmou que falta ao Mercosul "vocação para tomar decisões comuns, e isso faz com que o bloco regional não funcione". Na mesma semana, o Peru retirou o seu embaixador em Caracas, em represália às críticas formuladas pelo presidente Chávez a um dos candidatos à eleição presidencial. A Bolívia, por sua vez, ameaçou desapropriar os bens de uma companhia brasileira e rompeu os contratos com a Petrobrás para a exploração de gás. O Paraguai e o Uruguai, membros fundadores do Mercosul, anunciam, para quem quiser ouvir, sua intenção de negociar - se é que já não o estão fazendo - um acordo de livre comércio com os EUA, incompatível com sua participação no Mercosul. Por fim, e como se não bastasse, a Argentina pôs em vigor recentemente o Mecanismo de Ajustamento Competitivo, eufemismo para designar a introdução de um mecanismo de salvaguardas no Mercosul.

O que está acontecendo? Para entender a razão destas tensões é preciso ter em mente três fatos: a irrupção dos movimentos sociais no cenário político latino-americano, o fator divisivo representado pela Alca e os sucessivos desencontros no Mercosul.

A América Latina está vivendo um novo momento. Os anos 1980 foram a década da redemocratização. Em seguida, nos anos 1990, foram as reformas econômicas. Agora é chegada a vez dos movimentos sociais. As sociedades latino-americanas prezam a democracia, deixaram de rejeitar reformas liberalizantes, mas se perguntam por que sua região está crescendo menos do que a média das economias em desenvolvimento. Alguns países, como o Brasil, menos do que a média africana. Querem saber quando a região se verá livre das restrições fiscais que tolhem o investimento. Indagam com ansiedade quando chegará a hora de reduzir a pobreza, as expressivas desigualdades de renda e as discriminações raciais. A falta de uma resposta convincente, tanto à direita quanto à esquerda, salvo algumas exceções, como o Chile, está conduzindo a uma crescente insatisfação social. Os pobres estão impacientes, disse o diretor do FMI.

Não foram os generais que derrubaram governos na Argentina, no Equador e na Bolívia. Foram os movimentos sociais, a agitação da rua. A legitimidade de suas demandas e a falta de um horizonte para o seu atendimento estão por trás da chamada esquerdização da América Latina. Mais do que isso, estão condicionando as eleições presidenciais e influenciando a política externa em vários países.

Embora o termo esquerdização corresponda a uma evolução real, é equívoco, pois designa situações diversas. Jorge Castañeda - retomando a reflexão de Teodoro Petkoff na Venezuela - chama a atenção para duas vertentes de esquerda: uma, que é herdeira da tradição marxista e inclui Lagos, Fernando Henrique, Lula e Tabaré Vásquez; outra, que se inspira no populismo de Vargas e Perón e tem seus seguidores em Kirchner, Chávez e Evo Morales. A primeira tem uma agenda interna e se concentra no combate à pobreza e na melhoria da saúde, educação e habitação. Pode opor-se a Washington, sem necessariamente estimular um conflito. A segunda não tem propriamente um projeto econômico, privilegia os programas assistenciais e faz da política externa (e de uma dose variada de antiamericanismo) um ingrediente da coesão interna. A política externa pode constituir-se, assim, em fonte de instabilidade, tensão, quando não conflito.

O segundo fato está no caráter divisivo que assumiu a negociação da Alca. De um lado, é verdade que o processo negociador continha distorções que precisavam ser corrigidas; de outro, no entanto, a forma como se buscou redirecionar as negociações acentuou as divisões, em lugar de atenuá-las. Toda vez em que colocamos nossos vizinhos diante da opção entre os EUA e o Brasil, formulamos um dilema que não lhes convém, pois acham natural estar bem com os dois. Diante do dilema, a resposta foi mais favorável aos EUA do que ao Mercosul, uma vez que os EUA estão negociando ou já negociaram acordos de comércio com 29 países do Hemisfério e obtiveram termos e condições mais favoráveis do que os que foram dados ao Mercosul. As divergências entre os que são a favor e os que são contra a Alca estão reeditando uma nova linha de Tordesilhas em nosso continente.

Por fim, o terceiro fato está na crise do Mercosul. Não se trata apenas da proliferação dos contenciosos comerciais, da rejeição ao acordo automotivo e da introdução de um mecanismo de salvaguardas. Com o ingresso inusitado da Venezuela e a recorrente ameaça de defecção do Uruguai e do Paraguai, instalou-se a imprevisibilidade sobre os rumos do acordo sub-regional.

É inegável que algumas das forças que atuam no cenário sul-americano extravasam o âmbito de atuação da diplomacia brasileira. Não obstante, é forçoso reconhecer que algumas das iniciativas que tomamos, em vez de contribuírem para a convergência, alimentaram a divisão. A origem de nossas dificuldades com a Argentina remonta à intensa campanha para uma vaga no Conselho de Segurança da ONU, sem nenhuma consulta ou entendimento prévio com nosso principal parceiro no Mercosul. Como se não bastasse, o Brasil derrubou, sem constrangimento algum, a candidatura do Uruguai à Organização Mundial do Comércio (OMC), provocando um compreensível ressentimento em outro de nossos aliados. Sem falar na candidatura brasileira à presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que recolheu a preferência de apenas 6 entre os 28 membros do banco.

Em vez de buscar uma liderança que nossos parceiros parecem não desejar, melhor seria preservar o papel moderador que sempre exercemos, contribuir para o entendimento e promover uma prosperidade compartilhada, como foi o objetivo do programa de integração da infra-estrutura física da América do Sul (Irsa).