Título: Por quê? Reação já!
Autor: Miguel Jorge
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/05/2006, Espaço Aberto, p. A2

Crime organizado, Estado desorganizado? Desequilíbrio entre autoridade oficial, liberdades individuais e direitos humanos? Violência inculcada na psique do cidadão brasileiro? Falta de investimentos em educação? Leis tolerantes com os criminosos? Ideologização da criminalidade? Radicalização ante nossa problemática social? Ou São Paulo vem colhendo o que plantou?

Um mar de teorias sufoca os brasileiros, que, apavorados, trancam as portas de suas casas, fecham o comércio, deixam as ruas vazias e tentam dissecar a tragédia que assola o Estado, com as ações de um grupo de criminosos. Esforço vão: é pouco honesto e demagógico atribuir a uma única causa um problema que exige mobilização coletiva da sociedade, e não só do Executivo, do Legislativo, do Judiciário e das forças de repressão à criminalidade.

Poucos se lembram, aliás, de que a organização desses grupos criminosos, dentro dos presídios, vem de muitos anos. Poucos se lembram, mas foram os presos da "esquerda armada revolucionária", no início dos anos 1980, que botaram, chocaram e criaram os ovos das serpentes que, hoje, atacam a sociedade civil de maneira tão preocupante.

A partir das "lições" de dialética, de marxismo, de organização em grupos e células, numa verdadeira mixórdia político-anarco-criminal, o banditismo ampliou sua ação, esgalhou sua hierarquia, fragmentou em arquipélagos as suas especialidades - tráfico de drogas, seqüestros, homicídios, roubos de cargas, contrabando de armas, etc. -, com quadrilhas que se fundem e se separam, e fica tudo por isso mesmo.

Surgem os novos delitos - "o malandro que aposentou a navalha", do verso de Chico Buarque de Hollanda -, novos criminosos entram em cena no exercício de suas atividades de advogados, economistas, empresários, etc. - sem que nada os detenha. "O que importa se Recife, São Paulo, Vitória e Rio de Janeiro disputam o lugar de cidade mais violenta do Brasil, se o País chegou a uma situação gravíssima na segurança pública?", pergunta a antropóloga Alba Zaluar, professora-titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Nossas autoridades poderiam acrescentar: o que ocorre em São Paulo, onde esse grupo criminoso já fez 158 atentados, bombardeou e metralhou bases e carros da polícia, provocou 74 motins em presídios e causou a morte de 45 pessoas já aconteceu também em Nova York, Roma, Paris e outras importantes cidades em todo o mundo.

De fato, aconteceu, mas com uma diferença: ao contrário de São Paulo, essas cidades, onde ainda há assassinos, traficantes, sonegadores, seqüestradores e contrabandistas, mobilizaram suas forças morais e não se transformaram em territórios de ocupação do crime organizado. Isso ocorreu pela simples razão de que todos os criminosos apanhados foram para a cadeia - e lá ficaram, cumprindo, de fato, suas penas.

No Brasil, entretanto, os criminosos não apenas ganham a liberdade, como acumulam fortunas, com as quais pagam advogados, corrompem e usufruem ótimo padrão de vida, afrontando a miséria de milhões de brasileiros.

O mais difícil não é somente a tarefa de reduzir ou de reprimir a criminalidade, mas sim a de - em meio às desigualdades sociais em que vivemos - combater aspectos que, direta e indiretamente, se relacionam com ela: a certeza da impunidade, a visão de que é fácil roubar, o primado do individual sobre o coletivo e outras deformações que, agora, estão diante de todos nós.

É essa crença inabalável na validade do crime e da violência como instrumento para uma fortuna rápida, aliada aos exemplos que vêm de cima - pois o brasileiro em geral é íntegro e trabalhador -, que funciona como combustível para a situação a que chegamos.

"Todo grande golpe em São Paulo", segundo revela reportagem do Estado, "tem que pagar um porcentual" a um grupo criminoso, "que domina 90% das prisões e a maioria do tráfico de drogas na capital e no litoral". Esse grupo arrecadaria, ironicamente, livre de impostos, R$ 1 milhão por mês, dentro das prisões.

O que acontecerá com os chefes desse grupo que ordenaram aos seus milhares de simpatizantes o assassinato de policiais, o ataque a bases da polícia e o incêndio de uma centena de ônibus, levando o terror para fora das fronteiras do Estado?

Como serão tratados, agora, os problemas que derivam dessas ações criminosas - que tendem a se prolongar -, se a Justiça brasileira continuar debatendo questões menores, como a de se um criminoso X é ou não um dos chefes do grupo? Como atenuar o desânimo da população paulista, de cujo olhar se esvaem os últimos vestígios de esperança de um futuro melhor para os seus filhos, em meio a "negociações" de autoridades com a bandidagem e a desestabilização da ordem pública?

Finalmente, quais são as condições da família brasileira - ou o triângulo elementar do pai instruído e empregado, da mãe que trabalha e cuida da casa e do filho na escola e longe da rua - para que ninguém caia na droga, ou seja, se torne mais um marginalizado?

Claro que há os problemas institucionais e outros ligados à segurança pública - investimentos, salários dignos para os policiais, armamento mais moderno, sistemas de inteligência, etc. Mas, além disso, são inúmeros os desafios familiares, emocionais, econômicos, educacionais e religiosos que temos de enfrentar.

A tragédia que São Paulo vive é a mais dolorosa a vitimar a população do Estado. Se não quisermos que ela se repita em maior amplitude, fazendo mais vítimas pelo País afora, precisamos começar a agir agora, hoje, e não amanhã. Cada um tem um papel a desempenhar.