Título: O papel da polícia
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Fonte: O Estado de São Paulo, 20/05/2006, Notas e Informações, p. A3

N ão são incondicionais o apoio e a solidariedade que a população de São Paulo deu à polícia, assim que se desencadeou a onda de atentados organizados pelo Primeiro Comando da Capital (PCC). Passada a surpresa da rebelião quase simultânea em 73 presídios do Estado e dos ataques a instalações e viaturas policiais - o que resultou na morte de 41 agentes da lei e da ordem -, a polícia foi recuperando, aos poucos, o controle da situação. Mas o que deveria ser uma operação de rescaldo e de busca e prisão dos bandidos envolvidos na morte de policiais e na destruição de propriedade se tornou uma matança que choca a opinião pública. Desde que foi proclamada a volta à normalidade na cidade de São Paulo, na terça-feira, foram mortos pela polícia 77 suspeitos.

Os policiais que participam dos bloqueios e diligências que cobrem toda a cidade estão lidando com gente perigosa, que tem as mãos manchadas de sangue; muitos deles tiveram companheiros covardemente assassinados ou suas famílias foram diretamente ameaçadas pelos bandidos - mas nada disso justifica que a repressão ao PCC se transforme em vingança. Cabe aos membros da cúpula policial instruir seus subordinados para que procedam com serena firmeza, somente atirando para matar quando ameaçados de morte. O uso indiscriminado da violência acaba provocando vítimas inocentes e é o caminho mais curto para indispor a polícia com a população.

O comandante-geral da Polícia Militar, coronel Elizeu Eclair Teixeira Borges, garantiu, em entrevista à Folha de S. Paulo, que "todas as mortes (de suspeitos) aconteceram nos contra-ataques da polícia. Está claro nas ocorrências". Pois cabe a ele, para tranqüilizar a população, provar o que diz. Também afirmou que quase 70% dos mortos têm "uma longa ficha criminal". Mas o fato de alguém ter antecedentes na polícia não basta para justificar sua morte. E qual a explicação para os 30% restantes?

As autoridades têm se recusado a divulgar a relação circunstanciada dos mais de 100 suspeitos mortos até a manhã de sexta-feira. Argumentam que essa divulgação facilitaria a fuga dos eventuais cúmplices do suspeito morto, o que atrapalharia o trabalho policial.

O coronel Elizeu Eclair Teixeira Borges reconhece que o fato de os boletins de ocorrência não estarem disponíveis para a imprensa "causa desconfiança". Mas reitera que, nas refregas dos últimos dias, não houve excesso policial.

Cada ocorrência que resulta em ferimentos ou morte tem, por lei, de ser apurada em inquérito, que precisa ser encaminhado à Justiça no prazo de 30 dias. Nas atuais circunstâncias, não é razoável esperar que os inquéritos cheguem aos tribunais para que a opinião pública tome conhecimento do que de fato está ocorrendo na guerra contra o PCC.

As autoridades policiais podem dar uma satisfação à opinião pública - e com isso tranqüilizar a população -, liberando cópias dos boletins de ocorrência com a rasura dos nomes das vítimas, sempre que a sua divulgação puder comprometer o trabalho policial. Seriam, assim, dissipadas as desconfianças a que se referiu o comandante da PM.

A polícia está lidando com uma situação extremamente complexa. Tem de tirar das ruas bandidos perigosos, que não hesitam em matar. E não pode fazê-lo usando luvas de pelica. Ao mesmo tempo, tem de investigar a autoria dos crimes que foram cometidos durante as tropelias do PCC. Mas tudo isso precisa ser feito dentro da lei e com o respeito aos direitos dos cidadãos de bem, que não são apenas "a elite branca" a que se referiu o governador Cláudio Lembo, mas também, e principalmente, honestos trabalhadores que moram nas periferias, nas favelas e nos cortiços.

O verdadeiro valor da polícia será demonstrado se ela souber, durante as operações, não apenas distinguir quem é bandido e quem não é, mas também respeitar os direitos do bandido. Comportando-se com firmeza, mas com moderação, restabelecerá a ordem pública e crescerá na estima e respeito da população. Mas, se ceder às vozes que clamam por vingança e empregar a violência indiscriminada que vitima inocentes junto com criminosos, fará o jogo do PCC - cujo objetivo é o descrédito das instituições e a derrocada da ordem legal - transformando-se num bando fardado.