Título: Por que dar autonomia legal ao Banco Central
Autor: Mailson da Nóbrega
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/06/2006, Economia & Negócios, p. B5

Não causou surpresa o que disseram o presidente do PT, Ricardo Berzoini, e o assessor presidencial Marco Aurélio Garcia. Falaram que são contrários à concessão de autonomia legal do Banco Central em um eventual segundo governo Lula. Berzoini aproveitou para sair com um disparate institucional. Para ele, a autonomia significaria "retirar o Banco Central do controle democrático do Legislativo". Seria o contrário.

Mais uma vez, a ideologia e a desinformação turvam a capacidade de muitos petistas de entender certas realidades. Em seu benefício, pode-se dizer que muitos intelectuais e formadores de opinião também defendem a subordinação do BC a políticas desenvolvimentistas do Executivo.

Esse padrão mental está defasado em mais de um século. A atribuição de autonomia a órgãos como o BC remonta ao final do século 19 nos países desenvolvidos, quando se tornou necessário distinguir organizações de governo daquelas de Estado. As primeiras seguem orientação do governo da hora, enquanto as segundas cuidam de políticas permanentes, de interesse geral.

Essas políticas têm a ver com a estabilidade da moeda, a preservação do sistema de pagamentos; o mercado acionário; a concorrência na economia; a regulação de setores como os de energia, transportes e telecomunicações; a supervisão das atividades ligadas à saúde e assim por diante.

Surgiram, assim, agências, entre elas o banco central, com a missão de conduzir tais políticas, dispondo de autonomia operacional para atingir objetivos determinados pelo poder político. Por exemplo, nos países onde vigora o regime de metas de inflação, o Executivo determina a meta e o BC tem autonomia para persegui-la.

A contrapartida da autonomia é a "accountability", a prestação de contas e a transparência. A lei obriga a divulgação de relatórios e o comparecimento ao Congresso para explicar o andamento das políticas.

Nas democracias maduras, a autonomia nasceu naturalmente. Na União Européia, até os anos 1990, fora o caso alemão, a autonomia dos bancos centrais ocorria só na prática. Diretores podiam ser demitidos, mas isso nunca ocorria devido os respectivos custos políticos. No Reino Unido, a autonomia formal (1997) foi um gesto simbólico do primeiro-ministro Tony Blair, para demonstrar que os trabalhistas haviam mesmo abandonado as velhas idéias. Nos demais países, a formalização decorreu do advento da moeda única, o euro, e da criação do BCE, nos termos do tratado de Maastricht (1992).

No Brasil, o BC tem gozado de autonomia na prática desde o governo FHC, malgrado as muitas trocas na diretoria. Vários estudos provam os benefícios dessa situação. A idéia não convence, todavia, os segmentos que gostariam de ver o BC recebendo ordens do Executivo para mudar juros e câmbio e assim "desenvolver" o País.

A autonomia legal dos bancos centrais também chegou à América Latina nos anos 1990, na esteira dos esforços para vencer a hiperinflação, da redemocratização e de avanços institucionais. Luís Jácome estudou 14 países da região e verificou que só em três não há autonomia: Brasil, República Dominicana e Guatemala. A lei não garante a efetividade da autonomia. Há casos em que o governo passa por cima, dá ordens ao BC e demite diretores, como na Argentina e na Venezuela.

Para funcionar, pois, não basta lei. A autonomia deve corresponder às crenças da sociedade e fazer parte do conjunto de instituições fortes, que criem incentivos à gestão macroeconômica responsável. Somente assim, sociedades intolerantes à inflação e mercados que funcionam podem inibir ações voluntaristas para mudar a política monetária, impondo custos políticos elevados aos seus autores.

Há fortes incentivos para que o próximo presidente proponha a autonomia legal do BC. Os benefícios serão enormes: aumento de confiança, redução mais rápida dos juros, economias fiscais e aumento do potencial de crescimento. O BC será tão autônomo como hoje, mas terá que prestar contas.

Se eleito, Lula tem tudo para adotar a medida, mesmo contra o seu partido. Não seria a primeira vez que contrariaria os petistas em questões dessa envergadura no front econômico. Lula parece ter mais neurônios do que os companheiros.

* Mailson da Nóbrega é ex-ministro da Fazenda e sócio da Tendências Consultoria Integrada (e-mail: mnobrega@tendencias.com.br)