Título: EUA começam a discutir o futuro da internet
Autor: Paulo Sotero
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/06/2006, Economia & Negócios, p. B7

A comissão de Comércio do Senado americano começará a discutir terça-feira um projeto de lei de comunicações que poderá afetar dramaticamente, no futuro,o acesso, a velocidade e o preço que os usuários da internet pagarão para usar a rede global de comunicação nos Estados Unidos e no resto do mundo.

Em jogo está a preservação do princípio da "neutralidade da rede", que nasceu com a internet e deu-lhe o caráter aberto e democrático que teve até agora. Ainda vigente, a "neutralidade" proíbe as grandes empresas telefônicas e operadoras de cabo, que são donas das redes físicas pelas quais trafegam as informações, de discriminar os usuários, garantindo o fluxo livre e rápido das informações online, sem privilégios quanto à velocidade dos serviços oferecidos.

O debate, que é travado há meses na própria internet e por meio de anúncios em emissoras de rádios e televisão, nasceu de decisões da Suprema Corte americana e da Federal Communications Comission (FCC), a agência reguladora das comunicações nos EUA.

Em junho do ano passado, em decisão que deixou em campos opostos os dois mais conservadores juízes da corte - Clarence Thomas e Antonin Scalia -, o Supremo americano afirmou o direito das companhias de cabo, que não são reguladas pela FCC, a restringir o acesso à sua rede de provedores de serviços rivais de internet. Sentindo-se discriminadas, as telecoms, que são reguladas pela FCC e estão vendo seu negócio tradicional encolher rapidamente, diante do avanço da telefonia via internet, pediram à agência para serem liberadas do cumprimento da norma que as impede de diferenciar entre provedores e usuários. A FCC atendeu o pedido e o assunto tornou-se o ponto mais controvertido da reforma das leis de comunicações, imposta pelas inovações trazidas pelas tecnologias de informação.

Há duas semanas, os defensores da neutralidade perderam uma importante batalha na Câmara dos Representantes dominada pelos republicanos e dependem agora de decisão do Senado, que ainda demorará semanas, e certamente vai requerer um complicado trabalho de conciliação com o projeto da Câmara. A maioria conservadora dos deputados rejeitou expressamente uma proposta para preservar o status quo e aprovou linguagem que, se mantida, permitirá a telecoms como a AT&T e Verizon e à empresa de cabo Comcast ca riar faixas mais rápidas de tráfego online em suas redes, discriminar por conteúdo e cobrar por isso.

Se isso acontecer, "a internet começará a ficar parecida com a televisão a cabo", disseram Lawrence Lessig e Robert McChesney, especialistas das universidades de Stanford e Illinois, em artigo publicado pelo Washington Post e reproduzido pelo Estado segunda-feira. "Meia dúzia de grandes empresas controlarão o acesso ao conteúdo e sua distribuição, decidindo o que você vai ver e quanto vai pagar por isso."

EXÉRCITO DE BLOGUEIROS Os dois professores alinham-se com grupos liberais, como o movimento MoveOn, e com um exército virtual de blogueiros. Sua campanha é financiada por empresas e/ou provedores de alta tecnologia e porte não inferior às telecoms, como Microsoft, Google, Yahoo e eBay. Um dos porta-vozes do movimento para manter o caráter aberto e não discriminatório da rede é o matemático e cientista da computação Vinton Cerf, pioneiro em tecnologias da informação, considerado por muitos "o pai da internet".

Com graves problemas de visão, Cerf, de 62 anos, deixou a semi-aposentadoria em que vivia, e aceitou o cargo de vice-presidente da Google, que usa como púlpito da pregação em prol da manutenção da neutralidade da rede. "As telecoms querem nos impor um modelo do século 19 no mundo do século 21", disse ele à revista The Economist, comparando a internet pedagiada às práticas monopolistas que marcaram, 150 anos atrás, a construção das redes de telégrafos - a primeira malha global de comunicação rápida que o mundo conheceu.

As esperanças dos defensores da preservação da neutralidade da rede repousam, no momento, num projeto de lei bipartidário apresentado pela senadora Olympia Snowe, do Maine, e por seu colega democrata Byron Dorgan, democrata de Dakota do Norte.

É, contudo, uma simplificação achar que o debate envolve apenas liberais e democratas empenhados em proteger a democracia online e a liberdade e a igualdade de acesso à internet, de um lado, e conservadores republicanos que servem os interesses do "big business" e precisam mostrar serviço e recompensar a generosidade das telecoms que lhes doam fundos de campanha, especialmente num ano eleitoral em que a maioria republicana na Câmara está em risco.

O site savetheinternet.com, que funciona como a central virtual da campanha pela preservação da neutralidade da rede, destaca entre os heróis da causa o deputado conservador James Sensenbrenner. Republicano de Wisconsin e liberal em matéria de comunicações, Sensenbrenner é o autor do projeto de lei aprovado pela Câmara dos Representantes, em dezembro, que transforma imigrantes ilegais e quem os ajude em criminosos, impõe a deportação dos estimados 12 milhões de estrangeiros que vivem em situação irregular nos EUA e prescreve a construção de uma cerca física ao longo dos 3.200 quilômetros da fronteira com o México. O conservador The Wall Street Journal também se alinha com os defensores da neutralidade da rede, em nome da preservação do espaço para a inovação garantida até agora pelo regimento de auto-regulamentação da internet.

A complexidade do assunto é reconhecida pelos dois lados. Uma das questões em debate, imposta pela inovação tecnológica representada pela internet, é, por exemplo, a fronteira entre a jurisdição da FCC e da Federal Trade Comission, o Cade americano, incumbido de evitar a formação de monopólios e preservar a competição.

Em recente encontro com executivos de companhias de cabo , o presidente da Comissão de Comércio, Ted Stevens, do Alasca, que é pelo fim da neutralidade, resumiu o dilema que os dois lados reconhecem ter até para explicar as questões envolvidas nas discussões aos não iniciados. "Estou tentando imaginar um jeito de limitar os controles prescritivos do governo sobre os produtos e serviços via internet em uma ou duas palavras, mas não é fácil", disse. "Quanto mais procuro descobrir qual é o problema, mais difícil fica defini-lo."