Título: Quem está nu?
Autor: Otaviano Canuto
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/05/2006, Economia & Negócios, p. B2

A volatilidade e o fechamento massivo de posições em diversos mercados financeiros globais desde a semana passada - ações em países desenvolvidos e emergentes, commodities, câmbio - devem ser vistos como parte do movimento de ajuste a um novo cenário de menor liquidez internacional e realinhamento cambial entre as principais economias. Na verdade, um movimento que se vem desdobrando em vários tempos.

A abundância de liquidez generalizada dos últimos quatro anos refletiu inicialmente a convergência de políticas monetárias antideflacionárias nas economias centrais, combinadas com as políticas de acumulação de reservas e impedimento de valorização cambial nas economias asiáticas. À medida que se veio dando a lenta e gradual normalização da política monetária norte-americana, a presença de diferenciais significativos de juros entre, de um lado, os EUA e, de outro, a Europa e particularmente o Japão, provocou uma nova onda de geração de liquidez a partir do "carry trade" - colocar ativos de maior risco-retorno na carteira, financiando-os mediante captação em mercados em que os juros estejam baixos e não haja expectativa de valorização cambial acentuada durante o horizonte do investimento.

A engrenagem de geração de liquidez e de sustentação de portfólios alavancados se manifestou sob diversas formas: na permanência de juros baixos nos títulos mais longos do Tesouro norte-americano, alimentando o boom imobiliário e o consumo locais; na suavidade da acomodação aos preços mais altos do petróleo e a conseqüente geração-com-reciclagem de petrodólares; no uso massivo de derivativos de crédito para deslocar riscos das carteiras dos bancos norte-americanos; e, enfim, na resistência da demanda por ativos em dólar, a despeito da quebra de recordes no déficit em conta corrente dos EUA. No mesmo contexto, a liquidez abundante derramou-se sobre quase todo o espectro de ativos de riscos e a busca de retornos reais levou a quedas históricas nos spreads desses mercados - junk bonds, títulos de dívida pública e privada de emergentes, papéis de curto e longo prazos, commodities de vários tipos, etc.

A nosso juízo, o desmonte parcial dessa engrenagem vem-se dando por etapas. Não por acaso pressões cambiais e turbulências financeiras em países com déficits em conta corrente e alta alavancagem doméstica - Islândia, Nova Zelândia - vieram logo após o anúncio pelo banco central japonês de que findaria sua política de relaxamento quantitativo e de que em breve suas taxas reais básicas voltariam a ser positivas. Outro gatilho pode ser localizado na reunião de ministros do G-7 do final de abril passado, em Washington, à época da reunião de primavera do FMI e do Banco Mundial, a partir da qual se vem firmando uma convicção de que acabou a negligência oficial em relação à posição valorizada do dólar e aos desequilíbrios globais em conta corrente. Vale notar que já em março ocorreu queda abrupta na compra externa - oficial e privada - de títulos do Tesouro dos EUA.

O novo disparo de desalavancagem, na semana passada, afetando mercados de risco, foi a inquietação com os indícios de alta na inflação dos EUA, após um mês de mergulho do dólar, desvalorização cujos reflexos em preços locais ainda não se desdobraram. Isso consolidou a percepção de uma convergência pelo alto entre as taxas de juros das economias centrais, bem como da reemergência de riscos cambiais e de volatilidade nos preços dos ativos, nesse segundo caso algo inevitável em qualquer contexto de mudança significativa de cenário.

Vem de Warren Buffett, o megainvestidor americano, a famosa expressão de que é quando a onda na praia desce que se pode ver quem está tomando banho sem roupa. Os candidatos principais a revelarem nudez são aqueles em que a ousadia tem sido máxima: emergentes que combinaram apreciação cambial com déficits em conta corrente (Turquia, Hungria, África do Sul); algumas commodities cuja valorização recente tem sido maior que a justificável por condições de mercado (cobre, zinco, etc.); hipotecas sem pagamento à vista e sem amortizações nos EUA; e outras. O contágio não tem sido cego e chegou a hora de ver como bons fundamentos ajudarão a atravessar a nova etapa de menor liquidez e crescimento nas economias centrais.