Título: Gastança da Venezuela pode abalar estrutura econômica
Autor: Jens Erik Gould
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/06/2006, Economia & Negócios, p. B12

Falta investimento e os venezuelanos vivem como se o dinheiro do petróleo fosse eterno

Numa recente manhã de domingo, clientes lotam o Vintage, um bar de luxo e moderno da cidade, cuja melhor bebida é a vodca. Próximo dali está a revenda Chevrolet Castellana, cujos clientes esperam oito meses para ter o carro que já pagaram. Na LG Digital Store, na RCA Electronics , no centro de compras Sambil, a confiança do consumidor colabora para que as prateleiras de televisores e refrigeradores fiquem vazias.

"Até os nossos trabalhadores do setor da construção estão gastando todo o salário, logo que recebem", disse Gerardo Pereira, 33 anos, proprietário do Vintage, acrescentando que nunca viu os venezuelanos de todas as classes sociais gastando tanto.

Com as receitas do petróleo transbordando, o governo tem gasto como nunca o fez até hoje em programas sociais que ajudam os pobres a economizar seu dinheiro, oferecendo educação gratuita, assistência à saúde e alimentos mais baratos.

As despesas com aumentos de salários e projetos de infra-estrutura também injetam dinheiro na economia, que vai para o bolso dos venezuelanos. Como resultado, os consumidores a cada ano têm comprado mais, ajudando a Venezuela a contabilizar um crescimento de mais de 9% no ano passado e no primeiro trimestre deste ano.

Os economistas venezuelanos e estrangeiros, porém, afirmam que este é um surto de crescimento que, mais à frente, poderá afetar o país.

Essa farra de gastos, dizem, está ocultando limitações fundamentais de uma economia impulsionada por gastos, mas que não consegue gerar investimentos privados novos suficientes para sustentar um crescimento a longo prazo e a criação de empregos.

"Eles estão abrindo um buraco na economia e preparando a Venezuela para um verdadeiro revés, caso os preços do petróleo retornem aos níveis historicamente normais", disse Michael Gavin, economista-chefe da UBS Warburg para a America Latina.

DESESTÍMULO

O presidente Hugo Chávez moldou sua política econômica interna na canalização das receitas do petróleo para programas sociais e apertou as rédeas do setor privado: obrigou as empresas petrolíferas estrangeiras a alterar seus contratos, expropriou terras consideradas ociosas e impôs leis trabalhistas mais severas.

Chávez foi encorajado pelos seis aumentos no preço do petróleo desde a sua eleição, há sete anos. Para muitos investidores, contudo, o controle maior do governo e as medidas impertinentes adotadas contra as empresas privadas estão reduzindo as perspectivas para operar neste país, um dos grandes exportadores mundiais de petróleo.

"É muito ruim e inconveniente", disse o diretor do Banco Central, Domingos Maza Zavala, em entrevista. "Se está for a visão dos nossos investidores privados, em poucos anos a economia venezuelana estará em situação financeira difícil por causa da sua ineficiência produtiva".

Para Maza, o governo comete os mesmos erros que outros governos fizeram nas décadas de 70 e 80, quando foi difícil cortar os gastos excessivos, feitos em fases de preços altos do petróleo, no momento da queda desses preços, o que aumentou vertiginosamente a dívida nacional e provocou uma recessão econômica violenta.

"Sabemos que a fase de prosperidade vai chegar ao fim", disse. "Infelizmente, não acredito que o governo aprendeu as lições do passado".

INVESTIMENTOS

Os investimentos diretos estrangeiros quase dobraram no ano passado, de US$ 1,5 bilhão para US$2,9 bilhões, enquanto a economia se recuperou de uma queda livre que se seguiu às greves de protesto contra o governo, realizadas em 2002.

Em 2005, os investimentos estrangeiros diretos na Venezuela foram 30% menores que na segunda metade dos anos 90, período em que o setor do petróleo foi aberto para as empresas multinacionais, segundo informações da Comissão Econômica das Nações Unidas para os países da America Latina e Caribe,grupo que faz um rastreamento do desempenho econômico nessas regiões.

O total dos investimentos privados entre 2000 e 2004 aumentou 3%, de acordo com o Banco Central venezuelano. Michael Gavin disse que o desempenho do setor privado da Venezuela é fraco, comparado com outras economias latino-americanas que vêm crescendo. Por exemplo, no ano passado o valor dos investimentos privados no México, em relação ao seu Produto Interno Bruto, foi duas vezes maior que o registrado pela Venezuela registrou em 2004. O Banco Central não divulgou os dados de 2005.

Maza disse à Assembléia Nacional, na quarta-feira, que o investimento privado no país está 15% abaixo da produção total, nível , segundo ele, necessário para manter a economia crescendo. "Este é um dos defeitos do crescimento atual", acrescentou.

A entrada abundante de produtos estrangeiros impede as indústrias nacionais de se expandirem e criarem mais postos de trabalho, disse José Rojas, o anterior ministro das finanças de Chávez que trabalha agora como consultor econômico. As importações, quase um terço dos Estados Unidos, cresceram 28% no ano passado, chegando a quase US$ 25 bilhões, informou o governo venezuelano.

GASTOS

Embora a economia tenha crescido 9% no ano passado, as vagas no mercado de trabalho não chegaram a 2%, de acordo com o Instituto Nacional de Estatísticas, órgão oficial.

Enquanto isso, os gastos públicos subiram 40% no primeiro trimestre do ano, para US$ 11 bilhões, de acordo com o Banco Central.

O ministro do Planejamento e Desenvolvimento, Jorge Giordani, espera que a economia cresça 7% este ano, já que a forte demanda por produtos colabora para a retomada de investimentos nos setores de telecomunicações e comércio. Os gastos públicos representaram 28% do PIB em 2005.

"Quando vejo alguém com um novo modelo de roupa, tenho de comprar também", disse Judith Quintero, de 29 anos, que alega estar gastando mais do seu próprio bolso pois as vendas na loja de roupas para crianças, Confetti, onde é gerente, registrou um aumento de 40% no mês passado. "Meu marido diz que gasto mais do que ganho", acrescentou.

As empresas não falam sobre sua relutância em investir porque não querem contrariar o governo e também porque, neste momento, estão lucrando com o alto nível de consumo - que quase dobrou no primeiro trimestre, de acordo com a empresa de pesquisas de mercado LatinSource.

"Os comerciantes estão todos muito felizes porque estão ganhando muito", disse Oscar Garcia Mendoza, presidente do Banco Venezuelano de Credito, "mas não querem investir de jeito nenhum".

Embora essa enxurrada de lucros advindos do petróleo tenha provocado um grande aumento no setor da construção em outros países produtores de petróleo, como o nos Emirados Árabes Unidos, Garcia salientou que não via nenhum guindaste de construção no centro de Caracas, que ele enxerga da janela do seu escritório, no alto de um edifício.

Chávez, esquerdista que se tornou o principal antagonista do governo Bush na América Latina, acabou desencorajando os investimentos que o país tanto necessita, ao manter um áspero discurso contra o capitalismo e endossar uma transformação da Venezuela, a caminho "do novo socialismo do século 21".

Como o Judiciário é controlado pelo governo, muitos comerciantes acham que os contratos são pouco respeitados, disse Antonio Canova, do escritório de advocacia Bolinaga Levy Marquez & Canova, em Caracas.

Além disso, os investidores estão preocupados com sua segurança pessoal, já que o crime se generaliza pelas cidades venezuelanas e uma série de seqüestros e assassinatos ocorridos recentemente chocou o país.

No setor industrial, 40% das empresas fecharam desde que Chávez assumiu a presidência, a maior parte logo depois de ele ser empossado e daí em diante não se observou uma recuperação, informou a Conindustria, a maior associação das indústrias da Venezuela. Embora o setor industrial esteja prevendo um crescimento de 10% este ano, apenas um décimo das empresas planeja fazer investimentos a longo prazo, como expandir suas instalações ou construir novas fábricas.

"Realmente não existem regras e regulamentos estabelecidos para encorajar o setor privado", afirma Edmond Saade, presidente da Câmara de Comércio Americano-Venezuelana. "Na verdade há mais regras de controle, que tornam a vida mais difícil".

PROGRAMAS SOCIAIS

Chávez transferiu as reservas estrangeiras e os lucros do petróleo para um fundo de desenvolvimento que, segundo Maza Zavala, deve atingir US$ 20 bilhões no final do ano. Esse dinheiro financia um grande número de programas sociais, como alfabetização, assistência à saúde e mercados com alimentos baratos, que são a marca registrada da sua "revolução bolivarista".

Mark Weisbrot, co-diretor do Centro de Pesquisa Política e Econômica, em Washington, diz que esses programas ajudaram a elevar o padrão de vida e a produtividade dos trabalhadores mais pobres. Observou ainda que dados do Instituto Nacional de Estatísticas mostram uma queda de 7% no nível de pobreza no país, desde que Chávez chegou ao governo.

Weisbrot discorda de economistas que prognosticam uma ruína desse surto econômico gerado pelo consumo, dizendo que o crescimento de 11% no setor não petrolífero é um calibrador mais importante da economia que a confiança do investidor.

No momento, pelo menos, os venezuelanos estão gastando como se não houvesse amanhã. "As pessoas de todas as classes sociais têm dinheiro no bolso", diz Pereira, proprietário do bar Vintage, recolhendo as garrafas de bebidas caras que os clientes deixaram pela metade. "E todo mundo está consumindo", acrescentou.