Título: Carência de zelo
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/05/2006, Nacional, p. A6

À primeira vista parece até justa a reação da Câmara dos Deputados contra a divulgação, pela Polícia Federal, de uma lista de parlamentares apontados, junto com assessores de seus gabinetes, como integrantes da quadrilha que fraudava licitações na compra de ambulâncias para prefeituras a partir de emendas ao Orçamento da União.

À segunda olhada, porém, percebe-se que, se a PF se precipitou na divulgação de uma lista que pode conter inocentes, o Legislativo também se apressou na presunção da inocência da maioria, separando apenas 16 - entre os 63 inicialmente citados - para serem investigados, sob o argumento de que só em relação a eles há indícios suficientes para justificar suspeita.

Há aspectos objetivos e subjetivos a serem levados em conta no exame da questão. Objetivamente, há o fato de que emendas ao Orçamento da União pressupõem a ação de um parlamentar, pois só eles têm a prerrogativa de apresentá-las. Só isso já aconselharia acuidade na análise de acusações envolvendo liberação de dinheiro público originada no Parlamento.

Objetivamente há depoimentos de vários deputados sobre o assédio dos lobistas da máfia aos gabinetes de deputados. Passaram por todos eles oferecendo seus serviços de superfaturamento dos contratos: os deputados dariam as emendas e, em troca, receberiam uma parte da "sobra" à qual, em bom português, dá-se o nome propina.

Alguns foram bem-sucedidos, outros não. Em princípio, reza a boa norma da prudência que se deva considerar a hipótese da existência de equívocos na lista elaborada a partir das investigações da PF, primeiro, e ampliada depois pelo depoimento da funcionária encarregada de "agilizar" a liberação do dinheiro no Ministério da Saúde.

Mas indica a lógica que os erros sejam exceções. É justo que a Câmara reclame da divulgação dos nomes a priori, mas é absolutamente impróprio que inverta o sentido das coisas e, de antemão, absolva a maioria de quaisquer suspeições.

E fez isso numa reunião de duas horas e meia da Mesa Diretora, em contraposição a uma investigação da Polícia Federal que levou meses levantando dados e informações.

Um exemplo de como a Câmara pode ter cometido injustiças (para usar de amenidade) ao inverso: um dos deputados retirados da lista por esse ato unilateral da Mesa está com duas ambulâncias compradas no Estado de Mato Grosso do Sul por intermédio da Planam - empresa que operava as fraudes - estacionadas em imóveis de sua propriedade no interior da Bahia.

A Câmara dos Deputados, no mínimo, exibe excesso de boa vontade na presunção da inocência e carência de zelo na apuração dos fatos.

E é no histórico de displicências do Legislativo no trato de suas mazelas que reside o fator subjetivo a ser levado em conta na conduta do comando da Câmara no caso em questão. O passado não recomenda, no que tange à austeridade das investigações internas.

Em setembro de 2004, diante de denúncias de que o governo repassava dinheiro aos partidos e deputados aliados em troca de apoio político, a Câmara também instaurou uma sindicância.

Em tempo recorde, coisa de horas, decretou a inexistência de indícios que justificassem apuração mais cuidadosa. Atribuiu tudo ao disse-me-disse de corredor.

O desenrolar dos acontecimentos dispensa apresentações a respeito do rigor investigativo e da autoridade moral da Câmara no patrocínio de prognósticos sobre a questionável conduta do colegiado.