Título: 'A situação está cada vez pior'
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Fonte: O Estado de São Paulo, 06/05/2006, Internacional, p. A22,23

Brasileira conta como era difícil e precário viver na região sudanesa em conflito armado há mais de três anos

A carioca Beatriz Guimarães, de 33 anos, foi trabalhar em Darfur, no oeste do Sudão, após receber um convite da Oxfam, uma organização não-governamental britânica de ajuda humanitária. Ela começou a trabalhar na entidade oito anos atrás, enquanto fazia mestrado em estudos latino-americanos, na Universidade de Londres. Há 20 anos na Inglaterra, ela morou durante seis meses no Sudão e trabalhou na coordenação do financiamento da Oxfam para ajudar a população que sofre com os conflitos entre as milícias e o governo. Desde fevereiro de 2003, 180 mil pessoas morreram e mais de 2 milhões tiveram de deixar suas casas por causa dos combates. Beatriz falou ao Estado por telefone, do Canadá, onde passa férias.

Como são os locais em que você viveu no Sudão?

Passei dois meses e meio em Darfur e o resto do tempo, na capital, Cartum. Nesta, a situação é tranqüila, é uma cidade grande. Em Darfur, fiquei todo o tempo nas capitais dos Estados, como em Niala, no sul. Mas apesar de serem capitais, são cidades pequenas, com chão de areia. Nas ruas há burros, cabras e até alguns camelos. Não há eletricidade, é tudo à base de geradores.

Você conviveu com algum tipo de violência, nesse tempo?

Diretamente, não. Mas convivia com o problema, porque a situação lá é muito instável. Volta e meia um caminhão de ajuda humanitária era saqueado. Uma das coisas que mais falta em Darfur é segurança. Não só nos acampamentos, mas também nas aldeias. A situação está ficando cada vez mais difícil. Falei ontem com um colega que está na região e ele disse que esse problema está cada vez pior. É cada vez mais difícil prover assistência, por causa das estradas perigosas. As forças da União Africana (organização que reúne países do continente) só tem 7 mil homens, para toda a região de Darfur, que tem o tamanho da França.

Como era o cotidiano do seu trabalho no Sudão?

Em Cartum, ficava em um escritório. Em Darfur, eu me revezava entre o escritório e o trabalho em acampamentos. Morava em uma espécie de pensão, bem simples. Às vezes tinha computador e telefone, outras vezes, não. Quando voltei, estava exausta. É uma experiência muito intensa, seis dias por semana. A região é muito quente, a temperatura chega a 50°C. Às 23 horas apagam o gerador e é difícil dormir, por causa do calor.

Você via semelhanças entre o local e o o Brasil?

Há muitas coisas parecidas - as famílias grandes, uma certa alegria, a receptividade aos estrangeiros. Estava um dia viajando em um lugar distante e vi uma criança com a camisa da seleção brasileira, e quando você fala onde nasceu, é aquela festa. Não imaginava encontrar alguém com aquela camisa em um lugar tão distante.

Como é a situação nos acampamentos?

É muito difícil, apesar de neles a população ter acesso à água. Os acampamentos não são 100% seguros e ocorrem freqüentemente ataques perto deles. Tem um lado de uma vida normal, e outro lado muito triste. Quando chove, por exemplo, fica aquela lama toda, e as pessoas correndo risco de contrair alguma doença. É incrível ver isso. E não quer dizer que não tenha um lado trágico. Desde o início do ano, 200 mil tiveram que sair de suas casas, e buscam abrigo nos acampamentos.

As crianças são as mais afetadas pela situação?

As mulheres e as crianças. As mulheres acabam tendo o papel de cuidar da família. Às vezes os homens estão lutando, fugiram do conflito ou mesmo morreram. Há também muitos casos de violência contra a mulher.

A ONU anunciou, na semana retrasada, um corte pela metade das calorias das rações dadas aos refugiados de Darfur. O que pode ocorrer na região?

O momento agora não é de cortes, mas de apelar para que os governos dêem mais apoio. A situação está cada vez pior.

Esse acordo pode ser a solução para acabar com o problema?

Se for para realmente mudar as coisas, ótimo. Mas há dois anos (as partes envolvidas) assinaram outro acordo e a situação continua a mesma.