Título: O canto da sereia do gás venezuelano
Autor: Adriano Pires e Rafael Schechtman
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/05/2006, Economia & Negócios, p. B2

Em 26 de abril, os presidentes do Brasil, Argentina e Venezuela encontraram-se mais uma vez para discutir o Gasoduto Transbolivariano. Com uma extensão de 10 mil quilômetros, o megagasoduto sairá da Venezuela e, atravessando a Amazônia, chegará a Manaus, onde se dividirá em dois trechos, um em direção à Região Nordeste e outro à Brasília, de onde seguirá para o Rio de Janeiro e daí atingirá a Argentina, após cruzar o Uruguai. Orçado em cerca de US$ 25 bilhões, o gasoduto escoará até 150 milhões de m³/dia de gás venezuelano quando estiver pronto, após nove anos de obras.

Ao incentivar o projeto, o presidente Lula parece estar enfeitiçado pelo canto da sereia populista do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, de que a obra trará a integração entre os países sul-americanos, com vista à independência e ao desenvolvimento, pela promessa de geração de 1 milhão de empregos e pela expectativa de vir a se auto-aclamar o construtor do maior gasoduto do mundo. O presidente só não parece refletir sobre os riscos envolvidos no projeto.

Como se não bastassem os riscos tecnológicos inerentes a um empreendimento de tal envergadura, a construção do gasoduto enfrenta outros quatro grandes riscos. O primeiro é ambiental. O projeto terá de obter licenças ambientais para todo o seu traçado, com especial dificuldade para a longa travessia pela Amazônia. É bom lembrar que os Gasodutos Urucu-Porto Velho e Coari-Manaus, também na Amazônia e com extensões bem inferiores à do gasoduto em pauta, enfrentaram inúmeras restrições ambientais, e as obras do primeiro se encontram suspensas por falta de licenciamento ambiental.

O segundo risco é de natureza econômica. No Brasil, obras de menor complexidade acabaram demorando mais que o previsto e com custos inflacionados. Além disso, o gasoduto adotará uma tarifa postal, com o custo de transporte rateado igualmente por todos os consumidores situados ao longo do seu trajeto. Na prática, isso significa que os consumidores brasileiros subsidiarão os argentinos localizados no final do gasoduto.

O terceiro risco é de ordem política. Os resultados das aventuras da Petrobrás na Argentina, na Venezuela e, principalmente, na Bolívia demonstram claramente o risco de investir em países governados por presidentes populistas, que, em nome de um nacionalismo anacrônico, desrespeitam contratos, congelam preços e tarifas e nacionalizam indústrias. Qual é a garantia de que, no futuro, o presidente Chávez não utilizará o suprimento de gás venezuelano para chantagear os demais sócios a se alinharem às suas posições ¿revolucionárias¿ ou de que o seu governo, ou mesmo o próximo, não mude unilateralmente as regras ou condições contratuais de suprimento do gás venezuelano?

Esses três fatores de risco conduzem ao quarto, que é o risco financeiro do projeto. Como seria financiada uma obra que custa U$ 25 bilhões? Qual banco toparia financiá-la, diante de tamanhos riscos tecnológicos, ambientais, econômicos e políticos?

Enquanto devaneia com seus colegas, o presidente Lula parece ignorar a situação grave em que se encontra o mercado nacional de gás natural. Em vez de buscar soluções para aumentar a segurança da oferta interna de gás e diversificar as fontes de importação, prefere insistir em mais uma aventura. O que o governo deve fazer é empenhar-se na aprovação de uma lei para o gás natural que transmita segurança e atraia investidores que poderiam acelerar o crescimento da oferta interna de gás natural. Esta lei criaria condições para que empresas privadas, em parceria ou não com a Petrobrás, diversificassem as fontes importação de gás natural pela construção no País de plantas de regaseificação de gás natural liquefeito (GNL), que pode ser importado de países confiáveis.

Este, sim, é um projeto com racionalidade econômica e para o qual vale a pena o governo envidar esforços na sua concretização.