Título: Vexame em Puerto Iguazú
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Fonte: O Estado de São Paulo, 06/05/2006, Notas e Informações, p. A3

É tudo uma questão de perspectiva. Depois de ficarem trancados a sós durante 3 horas na cidade argentina de Puerto Iguazú, para afinal de contas não irem a parte alguma diante da questão que os reuniu - a nacionalização intempestiva da exploração do gás e petróleo bolivianos -, os presidentes Lula da Silva, Néstor Kirchner, Evo Morales e Hugo Chávez cumpriram o dever protocolar de falar à imprensa. Consideraram o encontro "histórico" e o "melhor dos últimos anos". Da perspectiva do coronel venezuelano, sem sombra de dúvida. A conferência de Iguazú apenas serviu para ratificar a vitória obtida com a decisão do seu tutelado dirigente andino, anunciada estridentemente no 1º de maio. Ou melhor, serviu também para Lula - o único derrotado nessa história - desempenhar um papel constrangedor.

Lula só faltou pedir desculpas pelo que Morales fez à maior estatal brasileira, cujos feitos, no mesmo 1º de maio do "decreto supremo", ele cantou em prosa e verso, para transformar em votos para a reeleição a auto-suficiência nacional em petróleo. "Estamos nos colocando à disposição para discutir de que forma podemos trabalhar juntos para elaborar projetos que possam contribuir para o desenvolvimento da Bolívia e melhorar a qualidade de vida de sua gente", entoou Lula. Salvo engano, ele foi eleito para cuidar, acima de tudo - e a despeito de tudo -, do desenvolvimento do Brasil e melhoria da qualidade de vida de nossa gente. Mas talvez seja impróprio insistir nessa platitude no caso de um chefe de Estado que escolheu o caminho da rendição para fazer boa figura perante os vizinhos que desdenharam de suas aspirações à liderança regional - o que ele e somente ele se recusa a enxergar.

Disse mais: "Os quatro presidentes aqui reunidos não farão nenhum gesto para que a integração sul-americana não dê certo." Como se essa integração como ele a imaginava já não tivesse ido a pique, substituída agora pelo bolivarianismo chavista, cada vez mais espaçoso e ditando cada vez mais os rumos das relações entre os países sul-americanos. Quando Lula afirma, por exemplo, que é imperioso mostrar ao mundo uma unidade de propósitos para transmitir aos investidores estrangeiros "que não queremos continuar sendo um continente eternamente pobre", nada mais faz se não endossar a retórica do confronto com o "imperialismo americano" que Chávez leva aos quatro cantos do mundo, espantando esses mesmos investidores.

Agora, o venezuelano pretende se apresentar à União Européia, em Viena, na próxima semana, como líder e porta-voz de um bloco de nações com as quais teria de negociar nos termos por ele fixados, com o apoio tácito que lhe proporciona o presidente brasileiro, numa demonstração de irresponsabilidade que entrará para a história. Em nome de uma miragem, Lula parece ter abdicado de defender o interesse nacional. Em Puerto Iguazú, foi um acanhado ator coadjuvante no espetáculo roubado pelo "astro" Hugo Chávez. Até o presidente Néstor Kirchner, com todo o seu ar costumeiro de quem estava passando, ouviu vozes e resolveu entrar, defende o interesse argentino com mais determinação - e arranca do brasileiro toda sorte de concessões, mantendo inclinada para o seu lado a balança das relações bilaterais.

O comportamento de Lula na arena internacional deixa perplexos todos quantos conhecem, muitas vezes por experiência própria, a tradicional forma de agir dos líderes e diplomatas brasileiros em situações de conflito, mesmo com nações que jogam na primeira divisão do mundo. Nem o menor vestígio dessa tradição de firmeza sem bravatas na passividade de Lula diante de um país cujo PIB não chegaria nem aos parcos US$ 9,8 bilhões não fossem as vendas de gás para o Brasil. No caso, a diplomacia lulista "é uma mistura de discurso ingênuo e ideológico com uma reação titubeante, timorata", define o ex-embaixador brasileiro em Buenos Aires Sebastião do Rego Barros Neto, também ex-diretor-geral da Agência Nacional de Petróleo (ANP). Não há, infelizmente, como discordar de sua avaliação.

Aliás, ontem foi a vez do embaixador Rubens Ricúpero engrossar a lista de respeitados diplomatas brasileiros que condenam o comportamento do governo nesse episódio. Para Ricúpero, o ato de Morales foi de expropriação da Petrobrás e a obrigação do governo brasileiro é de, no mínimo, acionar os mecanismos jurídicos em defesa dos seus direitos.