Título: O preço das ilusões
Autor: Francisco C. Weffort
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/05/2006, Espaço Aberto, p. A2

A política sul-americana de Lula desabou como um castelo de cartas diante da manobra de Evo Morales nacionalizando o petróleo e o gás bolivianos. O problema, evidentemente, não é apenas de Lula. Assim como não fez nada de significativo na infra-estrutura do País, Lula também não criou a Petrobrás Bolívia nem o gasoduto, que vêm de governos anteriores. Mas ainda uma vez, caberia a Lula administrar - e, eventualmente, corrigir - os rumos da política de Estado que recebeu como herança. E isso, uma vez mais, ele tem feito, da pior maneira possível.

Como adora vender ilusões, Lula promete tratar do assunto em conversas com Morales, Néstor Kirchner e Hugo Chávez. Pode-se prever o que virá por meio dessas conversas supostamente amigáveis. A visão de Lula sobre os problemas da região se tornou evidente na reunião de Puerto Iguazú, dia 30 de novembro último. Na ocasião, "traindo sua megalomania" Lula disse aos "hermanos" reunidos: "Aí chega você, que não estava previsto ser presidente da Argentina, chego eu, que não estava previsto ser presidente do Brasil, e a gente começa a perceber o que está acontecendo na América do Sul. (...) Imagine o que significou a eleição do Chávez na Venezuela; imagine o que significa se o Evo Morales ganhar as eleições na Bolívia" (Ricardo Noblat, 2/5/2006). E acrescentou: "São mudanças tão extraordinárias que nem mesmo os nossos melhores cientistas políticos poderiam escrever." Evo Morales venceu as eleições. Veio depois Tabaré Vásquez, do Uruguai. Na imaginação de Lula, os mosqueteiros, de início três, passariam a cinco.

Mas esses mosqueteiros eram realmente companheiros? Quanto a Morales, temos a expropriação da Petrobrás Bolívia e a pressão sobre os preços do gás para o Brasil, às quais não faltam nem o cenário de um show militar. Chávez, por sua vez, entrou em conflito com o Peru - pretendendo influenciar as eleições desse país, das quais, aliás, pode sair vitorioso um aprista que em passado recente levou o Peru à débâcle ou um coronel que alguns qualificam como fascista. No que diz respeito ao Brasil, a última proposta do venezuelano é a de um gasoduto "bolivariano" que chegaria até a Argentina, atravessando todo o território brasileiro, e que agora se supõe seja definitivamente arquivada.

Em Chávez tudo isso vem acompanhado da usual retórica antiamericana, que, porém, não o impede de cuidar dos negócios da Venezuela com os Estados Unidos, a quem vende 80% de sua produção petrolífera. A propósito, no caso da Bolívia, Chávez, que se reuniu com Fidel Castro e Morales um dia antes da crise, prometeu pôr à disposição do "companheiro" técnicos venezuelanos para operar as unidades da Petrobrás se esta sair do país. Tabaré Vásquez, por seu lado, anunciou em Washington que pode desligar o Uruguai do Mercosul, admitindo permanecer apenas como observador, porque considera que aquela associação traz mais problemas do que vantagens. Como se vê, cada um dos "irmãos" de Lula trata de defender os interesses dos países que representam. Pena que Lula não esteja preparado para fazer o mesmo.

Desorientado pelos delírios de seu chefe, as primeiras respostas do governo brasileiro à crise com a Bolívia não dão muitas esperanças. O primeiro comunicado sobre o caso fala mais da soberania da Bolívia do que de suas responsabilidades contratuais. Ou é que admite que os contratos Brasil-Bolívia não teriam sido firmados por governos representando a soberania dos respectivos países? De olho, como sempre, nas eleições de outubro, o governo Lula tenta atenuar o choque, dizendo que não vai faltar gás no Brasil. Sim, não vai faltar, mas o preço vai aumentar. Além disso, já se sabe que a Petrobrás não será rentável nas unidades bolivianas se tiver de continuar por lá. Se tiver de sair, essa expropriação das suas instalações vai custar aos contribuintes brasileiros alguns bilhões de reais. Evidentemente, a Petrobrás vai repassar o aumento do gás e seus próprios prejuízos ao consumidor e ao contribuinte brasileiros. Morales está esfuziante com o previsível aumento imediato de cerca de US$ 400 milhões nas receitas do Estado boliviano.

Esta crise nos ensina algumas lições. A primeira é a de buscar, com urgência, alternativas para o gás boliviano. Agora sabemos que o gasoduto como um perfeito equilíbrio entre Brasil e Bolívia não passa de um sonho de uma noite de verão. Basta que os bolivianos coloquem tropas na Petrobrás Bolívia para que saibamos que teremos de pagar mais caro pelo gás aqui. As alternativas ao gás boliviano existem e devem ser implementadas, mas custarão, no mínimo, três anos para dar resultados apreciáveis, obrigando-nos, enquanto isso, a depender de uma negociação extremamente difícil sobre os preços.

A segunda lição é que alianças entre países, tão desejáveis como possam ser, só podem ocorrer num horizonte muito longe da demagogia de Lula, Chávez, etc. Só podem ocorrer entre países econômica e politicamente estáveis, dispostos a respeitar os contratos, o que não era, evidentemente, o caso de Morales, desde as eleições em que chegou à Presidência. O fato de Lula ter dado apoio ao boliviano nas eleições evidencia, uma vez mais, sua ignorância de política internacional e sua propensão a se iludir quanto à sua própria força. A nacionalização boliviana só surpreendeu, no Brasil, os que, dentro e fora do governo, se deixaram iludir por uma impossível volta aos populismos do passado. No caso de Lula, uma volta ao passado que ele representa no plano dos sentimentos, mas que é incapaz de compreender nos planos da razão e da política de Estado.