Título: O desafio do usineiro ao Estado de Direito
Autor: José Nêumanne
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/06/2006, Espaço Aberto, p. A2

É interessante observar a estranheza com que algumas pessoas reagem ao fato de Bruno Maranhão não ser um pobre camponês, mas o lídimo descendente de uma linhagem de senhores rurais, proprietários de sesmarias de canaviais, e cultor dos melhores sabores da vida, entre os quais o gosto refinado por produtos de vinícolas francesas. E ver a imprensa registrar o peculiar bom humor bonachão com que esse usineiro de boa cepa reage às brincadeiras de seus companheiros da cúpula do Partido dos Trabalhadores a respeito do abismo social que o separa dos egressos do "chão de fábrica" e, o que é mais comum, da direção dos sindicatos. Não escapará ao observador atento das fotos em que o líder da depredação da Câmara dos Deputados, na semana passada, aparece com o presidente da República um certo aplomb, um inequívoco ar de superioridade, no rictus irônico desenhado por seus músculos faciais, ante os próprios companheiros de jornada a seu lado.

Mas quem o conhece bem, e há muito tempo, não se surpreende com isso. É o caso, só para dar um exemplo, do advogado paraibano Rômulo de Araújo Lima, que fundou com ele o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), dissidência armada do velho Partidão stalinista. "O impressionante é que ele não mudou nada", observou o ex-companheiro de aventura e tortura nas masmorras da ditadura. Será, então, Bruno Maranhão ainda um revolucionário sonhador que, à imagem e semelhança dos guerrilheiros de Sierra Maestra, em Cuba, de Douglas Bravo, na Venezuela, dos tupamaros, no Uruguai, ou de Tiro Fijo, na Colômbia, desafiava o poderio imperialista nos grotões de nossa América Latina? Nada disso! Para Araújo Lima, o antigo companheiro de direção do grupo revolucionário já era, então, e continua a sê-lo hoje, o retrato encarnado e esculpido da casta social na qual nasceu e foi criado. E mais: para o ex-camarada de luta armada, o líder do Movimento da Libertação dos Sem-Terra (MLST) é uma expressão perfeita da faceta esquerdóide do coronelismo rural nordestino. Aparentemente, trata-se de uma conclusão espantosa. Como pode um militante que dedica a vida ao combate ao latifúndio não passar de uma espécie de raivoso dissidente socialista dos senhores das terras e das almas do interior nordestino?

Para entender isso convém tirar as cascas da cebola mítica da ideologia e ir ao cerne da questão. Somente os que têm por ideologia a tolice acreditam - e os espertalhões que disso se aproveitam para se locupletar na política divulgam - que o MLST, o MST e outros movimentos ditos sociais dos desterrados das periferias urbanas lutem por uma reforma agrária para tomar a terra dos especuladores e entregá-la aos que nela podem produzir. Qualquer cidadão isento e lúcido está a par de que o verdadeiro inimigo desse tipo de grupo, que manobra com o lumpesinato urbano em busca do Éden campestre, é o Estado de Direito e tudo quanto este representa na luta por igualdade de oportunidades e possibilidade de ascensão social pelo mérito, e não pelo compadrio ancestral.

A brutalidade cega e estúpida contra a Câmara é a prova definitiva de que líderes como Bruno Maranhão não estão interessados em terra para produzir, mas na desmoralização das instituições democráticas, entre as quais o Poder Legislativo, por mais improdutivo e desmoralizado que de fato este já esteja. Concentrar a atenção na barbárie planejada e executada meticulosamente é abordar o fenômeno apenas pelos efeitos. Tão grave quanto a violência é o progressivo processo de leniência com que o Estado brasileiro trata as violações permanentes e impenitentes contra as leis por cujo cumprimento deveria zelar.

Os próceres aos quais a sociedade delega o poder de comandar o Estado se comportam como se fossem suseranos a quem o voto permite passar por cima das normas jurídicas vigentes quando isso lhes convém. Fernando Henrique estendeu tapete vermelho para o MST e entregou ao sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva, um estado de coisas em que os inimigos da democracia já eram tratados como se fossem vítimas dela. Com sua inata (e explosiva) mescla de sagacidade com ignorância e oportunismo, o atual presidente aproveitou-se o quanto pôde dessa verdadeira "herança maldita" para pagar as dívidas do PT com alguns grupelhos de extrema-esquerda inimigos figadais da democracia, muitos dos quais, aliás, abrigados não apenas nos porões, mas até mesmo nas torres do relógio do partido governista. A ostentação de bonés e outros badulaques deles pelo chefe do Estado é o símbolo decisivo da vigência do pacto da truculência coronelista com o corporativismo sindicalista contra o império impessoal das leis.

Esse pacto se manifesta claramente nas prioridades estabelecidas pelo governo petista, que, nunca é ocioso lembrar, financia as hordas de vândalos que invadem propriedades privadas e próprios públicos ao arrepio da lei e ao abrigo da indiferença dos guardiães desta. O governo que engordou os cofres do MLST do coronel Maranhão com R$ 5,7 milhões é o mesmo que propiciou um aumento, em três anos, de 26% dos lucros das cinco maiores instituições financeiras nacionais a mais que nos oito anos do governo anterior, execrado por proteger banqueiros. E, não por acaso, injetou 23% de aumento na renda do lumpesinato, aplicando com intenções eleiçoeiras o sistema assistencialista coronelista, já adotado na gestão tucana, da Bolsa-Família. Com a garantia da satisfação da elite financeira, o que leva a campanha adversária à indigência, e a segurança do triunfo eleitoral com o apoio das urnas milionárias da mendicância, o grupo no poder pouco se importa com os efeitos malignos de sua opção pelo lucro dos bancos e pela esmola aos pobres na redução dos investimentos. Isso lá dá voto?!

José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde