Título: A guerra dos juízes paulistas
Autor: Aloísio de Toledo César
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/06/2006, Espaço Aberto, p. A2

Os juízes estaduais de São Paulo estão entoando um saudável grito de guerra contra a impunidade e, sobretudo, contra a legislação penal em vigor, elaborada em 1940, quando o Brasil e o mundo eram outros.

Por iniciativa sua, deflagraram movimento destinado a elaborar anteprojetos de leis que serão oferecidos ao Congresso Nacional como sugestão de uma reforma processual que se impõe. A esse esforço se integraram o governador Cláudio Lembo, o presidente da Assembléia Legislativa, deputado Rodrigo Garcia, e o prefeito da capital, Gilberto Kassab.

Pode parecer absurdo que juízes queiram elaborar leis, tarefa privativa do Congresso Nacional, porém os juízes de São Paulo não acharam outra saída, tendo em vista a extrema urgência de mecanismos que auxiliem no combate à criminalidade.

A figura do Estado moderno, calcada nos princípios traçados pelo filósofo francês Montesquieu, prevê um equilíbrio indispensável entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Por exemplo: quem governa não julga nem faz as leis, quem faz as leis não julga nem governa e quem julga não governa nem elabora as leis.

Assim, salvo hipóteses excepcionais reservadas pela Constituição federal, os juízes não podem ter a iniciativa de leis. Mas no caso, ante a premência de uma solução necessária para os problemas brasileiros de segurança, os juízes de São Paulo tomaram a dianteira e resolveram elaborar os referidos projetos de reforma da legislação penal e processual, encaminhando-os, depois de prontos, ao Congresso.

A idéia emergiu de conversa mantida entre o presidente e o vice-presidente da Associação Paulista dos Magistrados (Apamagis), desembargadores Luiz Amorim e Nelson Calandra, nos dias em que São Paulo vivia a terrível escalada de violência desencadeada pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), um mês atrás.

Eles observaram que os parlamentares brasileiros, com raríssimas exceções, não caminham com a pressa que o País exige na realização das reformas necessárias das leis processuais. Ademais, ainda que os congressistas tomem a iniciativa de leis, não possuem a visão prática dos juízes, porque estes as aplicam e, por isso, avaliam com mais intensidade a sua real eficácia.

Em verdade, a legislação em vigor pune com extremo rigor delitos banais, de pequeno potencial ofensivo, mas permite a liberdade de assassinos confessos quando têm bons antecedentes (como se o homicídio que praticaram não fosse um péssimo antecedente).

O mais espantoso é que as pessoas tendem a responsabilizar o Judiciário e os juízes por esses atos indicadores de progressiva impunidade. Não sabem que nós, juízes, com freqüência condenamos essas leis que temos o dever de aplicar.

A tendência notada na opinião pública de responsabilizar os juízes leva à desmoralização de uma instituição que deveria sempre estar no topo do Estado: a Justiça. Sem crença na Justiça tudo o mais desmorona.

Pois foi em vista dessa contradição, e entendendo que não poderia permanecer indiferente, que a Associação Paulista de Magistrados reuniu os juízes com experiência e pós-graduação na área penal e tomou a iniciativa de levar o assunto ao conhecimento do governador Cláudio Lembo, isso porque ele próprio é vítima da ausência de melhor legislação.

O governador mostrou-se bastante receptivo e, no curso da reunião, mantida com os juízes no Palácio dos Bandeirantes, teve a idéia de fazer com que o Estado de São Paulo, por seus três Poderes (Executivo, Judiciário e Legislativo), produza conjuntamente os anteprojetos de lei.

A iniciativa dos juízes paulistas, com isso, ganhou maior amplitude, e nova reunião ocorreu na sede da Apamagis, desta feita comparecendo, além do governador, o presidente da Assembléia Legislativa e o prefeito de São Paulo.

Cláudio Lembo, ele próprio professor de Direito Processual Civil, entende que o Estado de São Paulo tem de dar o exemplo e oferecer os anteprojetos, quando estiverem prontos, de forma solene, ao presidente da Câmara dos Deputados, Aldo Rabelo.

A Apamagis selecionou o desembargador Luiz Carlos Ribeiro dos Santos para comandar o grupo de magistrados que trabalharão na produção dos projetos de leis. Ele é o presidente da Seção de Direito Criminal do Tribunal de Justiça.

Atuarão ao seu lado os desembargadores Sidney Benetti, doutor em Processo Penal pela USP, e Ademir Benedito, presidentes das Seções de Direito Público e de Direito Privado, respectivamente. O vice-presidente do Tribunal de Justiça, desembargador Caio Canguçu de Almeida, de grande experiência na área penal, também prestará sua colaboração. Os juízes terão 90 dias para concluir os trabalhos, que serão desenvolvidos nas instalações da Apamagis, com abertura franqueada para o exame de sugestões.

Todos as pessoas integradas ao grupo sabem que têm pela frente uma caminhada muito difícil, mas estão seguras de que o exemplo de São Paulo é de grande importância e poderá frutificar, quem sabe fazendo com que em outras unidades da Federação surjam iniciativas com o mesmo objetivo. O que não se pode mais admitir é que o País permaneça, atônito, presa de uma insegurança crescente, à espera de novas leis que não chegam nunca.

Os anteprojetos alcançarão não apenas as leis processuais, mas também as penais, tendo em vista que o Código Penal é de 1940. A questão não é fácil, porque vigora no direito penal o princípio da legalidade ou da reserva legal, que limita o poder punitivo do Estado e está previsto com clareza na Constituição federal (artigo 5º, XXXIX), que protege acertadamente os direitos e garantias fundamentais.

Aloísio de Toledo César é desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo