Título: Juízes sem rosto
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Fonte: O Estado de São Paulo, 14/06/2006, Notas e Informações, p. A3

Com a inauguração ainda este mês da primeira penitenciária federal do País, destinada preferencialmente a receber presos de alta periculosidade, a magistratura teme que aumentem as ameaças de morte contra integrantes da corporação. Receia-se que os juízes federais encarregados dos processos de execução penal de presidiários vinculados ao crime organizado tenham o mesmo destino do juiz estadual Antonio José Machado Dias, assassinado a tiros em março de 2003.

Corregedor de sete presídios da região de Presidente Prudente, cabia a Dias decidir sobre benefícios e sindicâncias pedidas pelos advogados dos presos. Ele recebia, em média, 5 mil pedidos por ano. Entre outros casos, estava sob sua responsabilidade a análise das situações processuais de alguns dos líderes do Primeiro Comando da Capital (PCC). Três meses antes, Dias recebera cartas com ameaças de morte e chegou a andar com segurança durante algum tempo. Foi metralhado dois dias após liberar a escolta. As investigações da polícia revelaram que as cartas que o ameaçaram partiram de uma penitenciária de segurança máxima.

Naquela mesmo mês de 2003 foi morto a tiros, em Vitória, o juiz Alexandre Martins de Castro Filho. Titular de uma das varas de execução penal da cidade, ele havia integrado uma força-tarefa do governo federal para investigar o crime organizado no Espírito Santo em 2002 e tinha sob sua responsabilidade vários processos criminais contra os líderes locais do narcotráfico. Na época, a ONG Centro de Justiça Global enviou ao Centro de Defesa dos Direitos Humanos da ONU, em Genebra, uma lista de juízes, promotores e delegados jurados de morte.

Para evitar tragédias como essas, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) está propondo ao Ministério da Justiça a adoção de medidas de proteção para "magistrados em situação de risco". O mais conhecido deles é o juiz federal Odilon de Oliveira. Responsável pela condenação de traficantes paraguaios e brasileiros em Ponta Porã, ele foi alvo de atentados e teve de morar no próprio Fórum, sob proteção policial.

Atualmente, segundo a Ajufe, vários magistrados contam com proteção policial durante 24 horas por dia e sete dias por semana. No âmbito da Justiça Federal, as ameaças de morte se multiplicaram a partir da edição da Lei de Lavagem do Dinheiro, em 1998, que facilitou o levantamento de provas pela Polícia Federal e ampliou o número de denúncias criminais feitas pelo Ministério Público.

Uma das medidas de proteção sugeridas pela Ajufe é a adoção do modelo dos "juízes sem rosto". Por ele, os magistrados em momento algum são identificados, nem assinam despachos e sentenças. Além disso, não há audiências pessoais, o que impede qualquer contato dos juízes com os réus e seus advogados. Esse modelo surgiu na Itália, para proteger os magistrados de vinganças e retaliações de mafiosos por eles condenados e, mais tarde, foi posto em prática na Colômbia, durante a ofensiva contra o cartel de Medellín, então liderado pelo traficante Pablo Escobar.

Apesar dos resultados que propiciou nesses dois países, o modelo dos "juízes sem rosto" sempre foi objeto de controvérsia entre os criminalistas e enfrenta grande resistência nos meios jurídicos. Uma das alegações dos críticos do sistema é que, como os juízes jamais são identificados, eles não podem ser responsabilizados por eventuais abusos de poder. Outra alegação é que, pela ausência de audiências pessoais, o sistema cerceia o trabalho dos advogados de defesa e desfigura o princípio jurídico do contraditório, esvaziando o direito dos réus ao devido processo legal.

As ameaças de morte contra magistrados não são novidade. Elas ocorrem no mundo inteiro desde o advento da própria Justiça penal. Evidentemente, nenhum país pode deixar de adotar medidas de proteção para garantir a integridade de juízes.

O que não se pode aceitar é a inversão de valores e princípios, adotando-se providências que comprometam direitos fundamentais. A Ajufe tem razão quando pede maior segurança para os juízes federais. Contudo a sugestão por ela apresentada não parece a mais adequada.