Título: Como semear novos conflitos
Autor: Washington Novaes
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/06/2006, Espaço Aberto, p. A2

Só na próxima sexta-feira o Ministério do Meio Ambiente deverá dar seu parecer sobre a questão da usina hidrelétrica Paranatinga II, em construção no Rio Kuluene, embora embargada pela Justiça Federal e contestada pelos grupos que vivem no Parque Indígena do Xingu e que chegaram a ocupá-la há poucas semanas. Entre outras coisas, alegam as 15 etnias que vivem no parque que a usina é altamente prejudicial a elas, porque afeta o Kuluene, principal formador do Rio Xingu; impedirá a piracema e reduzirá a fauna ictiológica, uma de suas principais bases alimentares; agravará a poluição, já intensa com a ocupação da área (o Xingu é hoje uma ilha de vegetação cercada por soja e pastagens); destruirá área sagrada dos índios kalapalos e outras áreas também sagradas para os xavantes; a usina foi indevidamente licenciada pelo governo de Mato Grosso (que não teria competência legal para tanto), sem considerar todas essas questões e sem exigir licenciamento conjunto com outras usinas projetadas para o mesmo rio (ao contrário do que o Ibama tem exigido em outras bacias); a empresa construtora não respeitou o embargo da Justiça Federal (pedido pelo Ministério Público) e seguiu com as obras; a usina, com as tentativas de cooptação de lideranças (a quem são oferecidas vantagens financeiras), está disseminando conflitos dentro do parque. Tendo em vista algumas das questões envolvidas, está sendo solicitado também parecer do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

É mais uma das graves questões que envolvem projetos hidrelétricos no Brasil e que são fruto da falta de discussão clara sobre a matriz energética brasileira. Da concepção equivocada de que a exigência de respeito a limites ambientais constitui obstáculo ao "desenvolvimento". No caso, também de desrespeito a uma decisão judicial que explicitava esses problemas e tentava defender direitos indígenas - em geral tão pisoteados. Segundo relatório da Comissão Pastoral da Terra, a violência contra índios só tem aumentado; em dez anos ocorreram 287 assassinatos de índios e 407 suicídios; a média de assassinatos, que fora de mais de 20 por ano de 1995 a 2002, subiu para mais de 40 por ano entre 2003 e 2005.

Na área energética, questões graves se sucedem. Como o licenciamento da hidrelétrica de Barra Grande, onde o estudo (?) de impacto ambiental ignorou a existência, na área de inundação, de uma floresta de milhares de hectares de araucárias, paisagem já em extinção. Ou a abertura de comportas da usina de Manso (ainda pendente de licenciamento ambiental, funcionando com liminar judicial), também em Mato Grosso, pondo em risco populações a jusante, porque o reservatório não comportou o volume de água acrescido por chuvas. Ou o estudo do WWF mostrando os riscos para a biodiversidade e as populações humanas das usinas projetadas para os Rios Madeira, Xingu, Paraguai e Araguaia (só para este são previstas 81). Ou ainda o estudo de várias instituições (Capes, Procad, Fapesp, CNPq) mostrando que a hidrelétrica de Tucuruí praticamente extinguiu os peixes rio abaixo; acidificou as águas, também contaminadas por mercúrio dos garimpos e eutroficadas; alterou o regime de chuvas na região; agravou a pobreza das populações a jusante e exigiu a retirada de mais de 30 mil pessoas da área do reservatório (que inundou mais de 2.500 km2, sem sequer retirar a vegetação). Também a informação (Folha de S.Paulo, 13/11/2005) de que pelo menos 20 barragens no Brasil correm risco de se romper por falta de manutenção.

São muitas histórias. Que fazem lembrar relatório da Comissão Mundial de Barragens em 2001, preparado por 42 especialistas e já mencionado neste espaço. Depois de examinar mais de mil obras no mundo, o relatório sugeriu aos governos "extrema prudência" nessa área. Porque em um século 45 mil barragens afetaram 60% dos rios do mundo, considerando apenas as que têm mais de 15 metros de altura. Elas exigiram a retirada de 80 milhões de pessoas (no Brasil, mais de 1 milhão). Em quase todas os custos foram "superiores aos estimados" e os benefícios, "menores que os previstos". A emissão de poluentes pela degradação de matéria orgânica é muito alta. O assoreamento dos reservatórios, preocupante (no Brasil, estudos oficiais falam em 0,5% ao ano). O nível de evaporação das águas e desperdício, muito alto.

Por isso tudo, recomendou aquela comissão, como imprescindíveis, as consultas prévias às populações afetadas, a descentralização da geração, prioridade para a conservação da energia (e não para a expansão da oferta, como está ocorrendo no Brasil), investimento prioritário em energias alternativas. Seria possível acrescentar que ainda há muitos outros caminhos que não estamos trilhando, como o remanejamento dos horários de funcionamento (para evitar sobrecarga nos horários de pico e sobras nos outros); tarifas diferenciadas por horários, inclusive para residências (com o mesmo objetivo); substituição de equipamentos desperdiçadores de energia; prioridade no setor público para a conservação.

Barragens e conflitos pelo uso da água não são privilégio brasileiro. Neste momento, as tensões no leste da África crescem com a construção de várias barragens pela Etiópia, pelo Quênia, pela Tanzânia, por Uganda, Eritréia, Ruanda e Burundi, que disputam com o Egito o uso das águas do Nilo (das quais este país depende em 90%). Na China, a usina de 3 Gargantas, no rio Yang-tse, chega à conclusão depois de desalojar mais de 1,3 milhão de pessoas e provocar vários outros graves problemas no rio.

Mas é inaceitável que o governo brasileiro, diante de tantas questões e divergências, continue devendo à sociedade uma discussão clara sobre nossa matriz energética e as opções possíveis - o que só favorece conflitos.