Título: Milhagem: ativo ou passivo?
Autor: Celso Ming
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/06/2006, Economia & Negócios, p. B2

Se você tem direito a milhagens da Varig é, em princípio, tão credor como a Braspetro, que fornece querosene de aviação, ou a Boeing, que cedeu 6 aeronaves. Como qualquer credor, está sujeito ao calote se a Varig quebrar ou até mesmo se não quebrar, dependendo do destino que, no processo de recuperação judicial, o juiz der ao programa Smiles, o sistema de fidelização da Varig.

Há dois dias, ficou pública a divergência sobre os direitos do credor de milhagem. O Procon paulista entende que ela é extensão do Código de Defesa do Consumidor. Logo, é objeto de contrato entre companhia aérea e cliente. Para todos os efeitos, o contrato deve ser honrado, assim como a especificação de um produto comprado na loja.

A Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), a entidade que regula o setor de transportes aéreos, entende que milhagem não passa de brinde que a empresa pode ou não distribuir.

A divergência talvez nem tenha sentido. Uma cláusula do regulamento do Smiles diz que "a companhia se reserva o direito de limitar a seu critério exclusivo o número de assentos disponível para as viagens prêmio".

Bastaria que a direção da empresa ou o novo administrador da Smiles defina em zero o número de assentos com direito a milhagem para o calote ficar protegido por contrato.

Num certo sentido, a Anac tem razão. A distribuição de milhagens começou de fato como brinde, em maio de 1981, quando a American Airlines concedeu milhas adicionais a cada vôo em suas aeronaves. A idéia se inspirava nos selos verdes oferecidos por supermercados americanos. Cada compra dava direito a certo número de selos e determinado número de selos podia ser trocado por torradeiras ou aspiradores de pó. O objetivo era garantir a fidelidade do cliente.

No caso das companhias aéreas, o programa de milhagem foi estrondoso sucesso. Atraiu novos compradores para um produto (assento não ocupado em vôo) que, uma vez encalhado, não poderia mais ser vendido. Em geral, ocupação de 60% é considerada vôo lucrativo.

Independentemente disso, o sistema é bom negócio para a companhia aérea por três razões. Primeira, porque atrai novos clientes que tenderão a dar preferência a vôos que derem direito a milhas suplementares. Segunda, porque os cartões de crédito reembolsam a empresa por milhagem oferecida. Aqui no Brasil, esse reembolso é segredo. Mas não deve ser muito diferente do que se paga nos Estados Unidos: um centavo de dólar por milha creditada, ou US$ 250 a cada 25 mil milhas acumuladas, como informa o Detroit News, dos Estados Unidos.

E é um bom negócio porque é um jeito barato de preencher capacidade ociosa. O custo por passageiro que ocupa uma poltrona que ficaria desocupada varia de acordo com a rota e a qualidade do serviço de bordo, mas é relativamente baixo. Nos vôos de São Paulo para qualquer capital da América do Sul, não passa de R$ 20 por passageiro. Basicamente, são despesas adicionais com combustível e refeições.

Essa é a razão pela qual qualquer sistema de milhagem é considerado ativo patrimonial de uma empresa e não mero passivo. O sistema Smiles tem sido objeto de disputa. Se uma companhia aérea tira grande proveito de seu sistema de fidelização, direito a milhagem não pode ser considerado mero brinde, como quer a Anac, o que carrega de razão o Procon.